A Ceia do Senhor: Livre ou Restrita?

A Instituição

A GRANDE SALA do festim, o anaigon dos gregos ou o cenaculum dos latinos, no crepúsculo daquele dia 14 de nizan, acolhe treze convivas.

No centro da mesa coberta de alvejante toalha franjeada de vermelho e roçar o pavimento em ladrilhos. Em cima dela pratos e as taças do ágape. Dos cestos sobressaem pães ázimos, o matzot dos judeus, de farinha triga sem levedura no simbolismo do pão feito às pressas no momento histórico da fuga do jugo egípcio. A memorar os tijolos amassados com o barro do Nilo, o molho avermelhado, o harozet, de formula minuciosa, composto de tâmaras, amêndoas e figos, macerados num fio de vinagre. Lembranças das amarguras suportadas à sombra das Pirâmides, escarolas, agriões, rábanos e salsas aos maços. As taças recheadas da bebida feita de dois terços de água e um de vinho. Na postura central do rito o cordeiro branco, macho, de um ano e sem defeito, assado no calor do fogo vivo; acima das brasas suspenso em espetos de romanzeiras que lhe conservam os ossos inteiros. Tudo pronto para a ceia legal da Páscoa, a máxima solenidade judaica, cuja instituição divina Moisés anotara no capítulo 12 do livro do Êxodo.

Os treze homens acomodam-se em ordem de precedência nos largos divãs amaciados por almofadões. Reclinam-se sobre o braço esquerdo afundado nos coxins e o direito fica livre para se servirem dos manjares.

Distingue-se uma voz. Enseverada de emoção, embrandecida de afeto: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, ante da Minha Paixão, pois vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no Reino de Deus” (Lc. 22:15-16).

É a Palavra de Jesus rodeado dos Doze Apóstolos. Adensa-se a tristeza. Carregam-se os semblantes de apreensões. Um frêmito de angustia perpassa o coração dos discípulos. Entre os sinedritas naquela mesma hora concertam-se planos, os sacerdotes conspiram, confabulam os esbirros. A fisionomia carregada e soturna do Iscariotes reflete a trama da traição.

Numa atitude de majestade sobrenatural a presidir o ágape litúrgico, nosso Senhor profere a oração ritual, abençoa o cálice cintilante aos reflexos dos lampadários suspensos do teto. Prova seu conteúdo. A taça circula de mão em mão.

Impetra a bênção sobre a travessa das ervas amargas. Dela retira algumas folhas, umedece-as no harozet cor-de-tijolo, mastiga-as, sendo, ato continuo, secundado pelos Doze.

Um dos comensais solicita ao presidente a explicação daquela solenidade. Exibindo o anho assado recoberto de ervas amargas e vegetais aromáticos de pronunciado sabor: orégano, loureiro, tomilho e manjericão, Jesus exclama: “Esta é a Páscoa do Senhor!”E minucia o episódio da libertação de Egito.

De novo a taça circula. Outra vez os convivas abluem as mãos. Aos Apóstolos o Mestre oferece pequenos pedaços do pão ázimo por Ele partido misturados com as ervas amargas embebidas no molho harozet.

A comemoração pascal atinge o ponto culminante. É o do partir o cordeiro. Jesus o abençoa. Trincha-o. A cada participante do festim oferece um pedaço. Recita a primeira parte do Hallel, o hino composto pelos Salmos 113-118. Segue-se o terceiro brinde, a “taça da benção”. É entoado o cântico das graças, a segunda parte do Hallel.

Todas essa ritualística, a prolongar-lhe o tempo se mesclava de alegre conversação acerca dos mais variados temas.

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Naquele 14 de nizan o cântico do Hallel consumou em definitivo a Páscoa judaica. O antítipo daquele cordeiro, nosso Senhor Jesus Cristo, o Verdadeiro Anho de Deus, poucas horas seguintes, seria levado ao altar do Sacrifício. Consumar-se-ia a Velha Dispensação. Caducaria a Lei. Ter-se-ia vencido o sacerdócio levítico. Extinguir-se-ia a razão dos sacrifícios prefigurativos de animais. Com a explosão da luz da realidade desvanecer-se-iam as sombras...

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Segundo o costume, a antecipar o quarto cálice, ocorria um banquete sem qualquer formalidade ritual.

Neste momento de descontração o Mestre afasta-se da presidência. Despe-se do himátion, o mantéu externo. Recobre a túnica com uma toalha de linho. Enche dágua a bacia das abluções.

Que fará Ele?

Gesto inusitado!

Prostra-se por terra...

À carga das emoções e das tristezas provocadas pelo semblante sério do Mestre, sobrepõe-se a espantosa surpresa: o presidente da Mesa Pascal a humilhar-se à semelhança dos escravos. E na postura de servo lava os pés dos Apóstolos...

Naquele hiato entre o fim definitivo do solene festim pascal e a instituição da singela Ceia Memorial, o surpreendente gesto de humildade evangélica... O escravo Jesus Cristo de rojo a lavar os pés dos discípulos....

Em ocasiões anteriores duas mulheres, uma antiga meretriz e a outra exorcizada dos demônios, banharam-Lhe os pés com suas lágrimas, enxugaram-Lhos com o véu dos seus femininos cabelos, ungiram-Lhos com recendente ungüento...Loucas ações impulsionadas pelo amor porque só o amor tem dessas loucuras...À arrependida ficou bem tal exagero porque muito, muitíssimo, se lhe perdoou. A Maria, que se antecipara a ungir o Corpo do Mestre para a sepultura, couberam os aplausos do Senhor e atribuir-se-lhe-ão ovações ao ser contado o seu feito “para memória sua”, “onde quer que for pregado o Evangelho”.

Que humanas e pecadoras criaturas se atirem aos Pés Sagrados...Pode-se entender!

Mas que Jesus se rasteje aos pés dos homens!!!

Ali está Ele...na suprema humilhação. Sem quaisquer formalismos...Porém sob o impulso do esvaziamento completo de Sua condição de Filho de Deus.

Vai chegar ao excesso do Seu desvairamento...

Desvario? Não tenho outro termo em meu pobre vocabulário. À vista dos homens, aos meus orgulhosos olhos é-me absolutamente impossível compreender...Só a título de desvario. De amor desvairado Jesus Se lança a lavar os pés daqueles homens. O amor tem desses excessos...

Já a Sua Encarnação não é um exagero de amor? O despojamento de Si mesmo ao nivelar-Se com os homens não é um extremo de amor? Suas lágrimas?

Sua compaixão dos pecadores?

De rastos achega-se a Judas Iscariotes. Acaso abluirá os pés do traidor? Ele de joelhos diante de Judas em cujo coração se instalara o diabo?

Há três anos, tentando-O, satanás propusera-Lhe prostrar-Se aos seus pés diabólicos para adorá-lo e em troca dar-Lhe-ia os reinos encantados do mundo com toda a glória deles.

Enérgico repelira-o o Senhor. Bravo e vigoroso esconjurara a atrevida proposta.

Agora, contudo, Ele ali...prostrado aos pés de Judas habitáculo do diabo...

Se uma alma vale mais do que o mundo inteiro com todos os seus suntuosos reinos e magnificentes glórias, nosso Senhor Se arrojou diante do traidor a lhe dar ainda uma oportunidade de se salvar da ação traidora. Por amor de uma alma, da alma de Judas, Jesus é capaz do desvairamento extremo e inconcebível de se prostrar diante do pecador possuído pelo diabo...

Jesus rasteja...Ele vai Se erguer. Lava os pés do último dos Doze. Levanta-Se. E é suspenso no madeiro do opróbrio. Se Ele veio para ser na cruz o maldito por nós e nos libertar da maldição da lei que nos incrimina e condena?

É nessa atmosfera de extrema sensibilidade e de excitada expectativa que o Senhor funda a Sua Solenidade Memorativa.

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O relato evangélico é suscinto como simples é a Ceia do Senhor.

Entre esta e a Páscoa judaica cavam-se diferenças abismais.

A Páscoa judaica memorava o êxodo do Egito. Centrava-se seu simbolismo no cordeiro. Cercavam-se pomposos e complicados ritos, desde a sua seleção sob rigoroso critério.

O cordeiro se comemorava um evento posto na História pretérita, tipificava outrossim um acontecimento futuro na Pessoa de Jesus Cristo a Se imolar na Cruz.

Chegara o verdadeiro anho. “Eis o Cordeiro de Deus!”, clamara o Batista Precursor.

Na cruz consumiria os pecados dos crentes nEle.

Concretizara-se em esplêndido acontecimento o Prenúncio repetido pelo cordeiro pascal sacrificado a cada 14 de nizan. Esta comemoração, carregada de mensagem profética, perdera agora sua razão de ser. Extinguiu-a a cruz em cujos braços Se dependurara o Cordeiro de Deus.

O festim pascal olhava para o futuro. Chegara esse futuro. Caducou o rito hebreu!

A Ceia do Senhor, instituto inteiramente novo, memora o evento do Calvário já acontecido e anuncia outro episódio futuro. Lembra a Redenção da cruz e reaviva a expectativa da Segunda Vinda de Jesus: ATÉ QUE ELE VENHA (I Cor. 11:26).

Os elementos simbólicos da Ceia são outros. Não se concentram em carnes de um animal e sim em pão e vinho.

Seu rito é de uma eloqüente simplicidade. Seu dia de celebração, sem se restringir ao 14 de nizan, é qualquer um: “todas as vezes”.

Seu significado é o da libertação espiritual, da alforria do pecado.

A Ceia do Senhor não substituiu a Páscoa israelita. Nem a prolonga. As diferenças características de cada uma separam-nas por inteiro.

A Ceia do Senhor é instituto novo! Sem vínculo algum com o festim judaico.

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ISTO É O MEU CORPO...ESTE CÁLICE É O NOVO TESTAMENTO NO MEU SANGUE...

De todo conveniente um Memorial de Sua Morte. Com A confiaria à lembrança fortuita dos homens?

No pão o símbolo do Corpo de Jesus! Do Corpo que Se prostrou à raiz das oliveiras...Do Corpo que rolou exânime na sala dos acoites...Do Corpo que arfou sob o peso do madeiro...Do Corpo que pendeu no patíbulo...Do Corpo por nós dado...

No vinho a figura do Seu Sangue! Do Sangue que molhou o Getsêmani...Do Sangue que lavou o pretório do procônsul...Do Sangue que gotejou as ruas jerosolimitanas...Do Sangue que manou da Cruz...Do Sangue por nós aspergido...

Na Ceia o MEMORIAL de Sua Morte Vicária e Expiatória.

“Partiu o pão...” A publicar o esfacelamento do Seu Corpo e a revelar-Se-nos Vítima por Sua própria Vontade.

Ao celebrar a Ceia arde-nos o coração com a inefável e enlevante lembrança do Seu Sacrifício, ÚNICO porque de VALOR INFINITO. Somos movidos à gratidão pelo dom de nossa salvação eterna.
Autor: Aníbal Pereira dos Reis - ex-sacerdote Católico Romano
Digitação: Sabyrna Santos e David C. Gardner 12/2008
Fonte: www.PalavraPrudente.com.br