A Causa de Deus e A Verdade - Parte I - John Gill D.D.

Seção 5 – Deuteronômio 30.19

"Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência."

Estas palavras são frequentemente usadas pelos apoiadores do livre arbítrio, para fazer o que é espiritualmente bom a favor dela e no seu poder. Eu considerarei brevemente este assunto tão controverso ao considerar as seguintes coisas:

I. O que é livre-arbítrio, ou qual é a natureza da liberdade da vontade humana.

1. A vontade do homem, embora sendo livre, não é livre de forma independente e absoluta. O ser humano depende de Deus, tanto no seu ser como no seu agir, é sujeito a Sua autoridade e mandamento, e é controlado por Seu poder. O coração do rei (Provérbios 21.1), e, portanto, o de todo homem, está na mão do SENHOR. Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR, que o inclina a todo o seu querer. Deus quer que o homem seja livre somente no sentido descrito acima, não que este não se sujeite a um ser superior, e, portanto haja sem controle, não estando de acordo com a vontade de Deus, nos exércitos dos céus, e entre os habitantes da terra: portanto, aquelas grandes e exaltadas palavras de vaidade, aujtexousion, liberum arbitrium, que carregam consigo o sentido de autossuficiência, despótica, liberdade arbitrária, são inapropriadamente dadas à vontade humana, embora apropriadas suficientemente na língua de alguns que creem no livre-arbítrio; tais como Faraó, que disse: Quem é o SENHOR, cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel? Não conheço o SENHOR, nem tampouco deixarei ir Israel (Êxodo 5.2). Outros disseram, São nossos os lábios; quem é senhor sobre nós? (Salmos 12.4).

2. A liberdade da vontade não consiste em indiferença ao bem ou mal, ou na indeterminação de ambos; caso contrário, a vontade sequer ser seria livre; pois como Deus é essencial e naturalmente bom, Sua vontade é determinada apenas àquilo que é bom; nem tampouco, Ele faz ou pode fazer qualquer coisa má; e mesmo assim, em tudo o que Ele faz, Ele age completamente livre na Sua vontade. A vontade dos anjos bons, mesmo no seu estado probatório, foi deixada mutável e passível a mudança; e ainda no seu estado confirmado, é impecável, inteiramente voltada e curvada àquilo que é bom, e ainda todo o serviço que efetuam a Deus ou ao homem, é feito com grande prontidão, alegria e boa vontade, sem força ou coação. A vontade do Diabo tende somente para o que é mal, sem a menor inclinação para o que é bom e além de inclinar-se para o mal, se move livremente nas mais altas categorias de pecado e malícia. Considerada no estado em ele que já esteve, está ou estará, a vontade do homem, é determinada ao bem ou mal, não está em equilíbrio ou indiferente a ambos. A vontade do homem, no seu estado de inocência, era de fato mutável, e capaz de ser influenciada pelo mal e inclinada a ele, como a queda demonstrou; mas enquanto estava naquele estado, era inteiramente pronta para aquilo que é bom. agia livremente e sem coação, na obediência aos mandamentos de Deus. No seu estado caído, a vontade do homem é inteiramente viciada as concupiscências pecaminosas e realizá-las lhe traz o maior gozo e prazer.

, Embora o homem seja inclinado tanto ao bem quanto ao mal, por causa do seu novo ser regenerando, tendo dois princípios diferentes, um de corrupção e outro de graça; ainda assim, ambos se movem livremente, porém, cada um determinado pelos seus vários objetivos. A carne ou a parte corrupta é unicamente determinada a fazer o mal; a graça ou a nova natureza a fazer o que é espiritualmente bom; para que com a carne, o homem regenerado sirva a lei do pecado, e com o seu entendimento a lei de Deus. A vontade dos santos glorificados no céu é completamente entregue às coisas espirituais e divinas, nem podem ser mudadas para aquilo que é pecaminoso; e, portanto, é dessa forma que eles servem ao Senhor constantemente, com toda a liberdade. Consideram, portanto, a vontade na classe menor dos seres, que a sua liberdade não consiste em indiferença ou indeterminação ao bem ou mal.

3. A liberdade da vontade é consistente com algum tipo de necessidade. Deus, de forma necessária e ainda livre, odeia aquilo que é mal e ama o que é bom. Como homem, Cristo estava debaixo de algum tipo de necessidade de cumprir toda a justiça e mesmo assim a fez voluntariamente. A vontade do homem é livre da necessidade física ou natural; ela não age e move pela necessidade da natureza, como muitas criaturas fazem, bem como o sol, a lua e as estrelas se movem no seu curso; o fogo, por uma necessidade física, arde; coisas leves sobem e corpos pesados descem. Ainda mais, é livre da necessidade de coação ou força; a vontade não pode ser forçada; nem é pela poderosa, eficaz e irresistível operação da graça de Deus na conversão; embora antes da conversão fosse relutante a submeter-se a Cristo e o Seu caminho da salvação, portanto, ela se dispõe no dia do Seu poder, sem qualquer violência; Deus trabalhando nela, como Austin diz: Cum suavi omnipostentia et omnipotenti suavitate, com doce onipotência e onipotente doçura: mas então a vontade do homem não é livre da necessidade de obrigação; ela é sujeita a obediência à vontade divina; embora sendo livre, não é livre para agir segundo a sua própria vontade, sem controle. Embora a vontade pecaminosa e corrupta do homem se manifeste escolha seu próprio caminho e se alegre em abominações apesar das leis de Deus, ainda assim, ela não é liberdade propriamente dita, mas dissolução. E, embora um homem bom considere a necessidade de submeter-se à obrigação de agir de acordo com a vontade de Deus, mesmo assim, ela é contraria a liberdade da sua vontade; pois ele, segundo o homem interior, tem prazer na lei de Deus. Além disso, há um tipo de necessidade que os letrados chamam de necessidade de imutabilidade, que diz respeito aos decretos divinos e aos eventos necessários, imutáveis e certos, que são consistentes com a liberdade da vontade humana: porque embora os decretos de Deus sejam cumpridos, todavia, estes não violam nem impedem a liberdade da criatura ao agir; por exemplo, a venda de José aos Ismaelitas, por quem ele foi levado a Egito, era de acordo com o decreto e o propósito de Deus, que o mandou e o propôs para o bem dos outros, e ainda os seus irmãos no negócio inteiro, agiram com suprema deliberação, escolha e liberdade das suas vontades imagináveis. Nada foi mais peremptoriamente, isto é, decisivamente, decretado e determinado por Deus do que a crucificação de Cristo, e ainda os homens nunca agiram tão livre ou perversamente quanto os Judeus em toda parte e circunstância daquela cena trágica. Então a liberdade da vontade é consistente com algum tipo de necessidade, ou seja, até certa servidão. Um servo pode servir ao seu senhor livre e voluntariamente, como o servo hebreu que não tinha vontade de deixar o seu dono quando o tempo da servidão esgotou. Um homem maligno que comete pecado e entrega-se inteiramente a ele, é servo do pecado, e ainda age livremente nesse serviço vergonhoso e pecaminoso; ao mesmo tempo ele é o escravo das concupiscências e prazeres que escolhe, nos quais se deleita. Isso fez Lutero chamar livre arbítrio de servum arbitrium.

4. A consideração da vontade do homem nos vários estados da inocência, na queda, regeneração e glorificação, serve para nos levar à verdadeira natureza e entendimento da liberdade e do poder dela. O homem, no seu estado de inocência, tinha tanto o poder quanto a vontade de fazer aquilo que era natural e moralmente bom; embora sua vontade fosse deixada mutável, e mediante a tentação fosse inclinada a fazer o mal, que serviu de porta para o pecado entrar e para a queda do homem. Este, no seu estado caído, é completamente submisso ao poder e domínio do pecado, é prisioneiro do pecado, escravo deste e não tem o poder, nem vontade de fazer aquilo que é espiritualmente bom. O homem, no seu estado regenerado, é liberto do domínio do pecado, mas não do ser do pecado; sua vontade é lavrada poderosa e graciosamente, é inclinado a fazer o que é espiritualmente bom, mas ele encontra um corpo de pecado e morte ao seu redor, que o aflige e o impede de fazer o bem. Os santos no céu são libertos tanto do ser como do domínio do pecado; e como eles têm uma vontade unicamente inclinada, então têm pleno poder de servir ao Senhor sem cessar.

5. A distinção entre a liberdade natural e a liberdade moral da vontade é muito útil nesta controvérsia , embora as duas estejam habilidosamente entrelaçadas; e porque negamos uma, é concluído que negamos também a outra; enquanto afirmamos que a liberdade natural da vontade é essencial a ela e sempre habita com ela em cada ação e cada estado da vida. A vontade de um homem maligno, no maior grau de servidão ao pecado, age tão livremente neste estado de servidão como agiu a vontade de Adão em obediência a Deus, no estado de inocência; mas a liberdade moral da vontade não é essencial a ela, ainda que acrescente a glória e excelência dela, e, portanto, pode estar ou não com ela, sem violar, ou destruir a liberdade natural da vontade. A liberdade moral da vontade para fazer o bem estava com Adão no estado de inocência, e isto foi perdido na queda; portanto, o homem em estado de corrupção e degeneração é destituído disso; no estado regenerado é implantado na vontade pelo Espírito e graça de Deus, e no estado de glorificação será na sua inteira perfeição. De modo que a controvérsia não deve ser acerca da liberdade natural, mas da liberdade moral da vontade, e não tanto sobre o livre-arbítrio em si, como a força ou poder dele; que me conduz a considerar a próxima pergunta, que é:

II. Qual é a força e poder do livre-arbítrio do homem, ou o que a vontade deste pode aprovar ou desaprovar, escolher ou recusar, efetuar e fazer?

1. Será aceito que a vontade humana tem poder e liberdade para agir em coisas naturais ou em coisas que pertencem à vida natural ou animal; tais como: comer, beber, sentar; ficar de pé, levantar, andar, etc. As partes externas, ações; movimentos do corpo, falar de modo geral, são sujeitos à vontade e controlados por ela; mas as partes internas, movimentos e ações dela não são, como a digestão da comida; secreção dela para vários propósitos e usos; nutrição e crescimento das várias partes do corpo; circulação de sangue, etc., todas que são feitas sem a permissão da vontade.

2. A vontade do homem tem a liberdade e poder de agir em coisas de natureza civil, como as que estão relacionados ao bem das sociedades, em reinos, cidades, vilarejos e famílias; como obediência a magistrados, casamento legal; educação de filhos; cultivo de artes e ciências; exercício e aperfeiçoamento de negócios e das indústrias; e tudo mais que contribua para o bem, o prazer e a vantagem da vida civil.

3. O homem também tem o poder de fazer as partes externas da religião, tais como: orar, cantar louvores a Deus; ler as Escrituras; ouvir a Palavra de Deus e submeter-se à todas as ordenanças públicas. Por isso, Herodes ouviu João alegremente e fez muitas coisas de maneira religiosa externamente. Os homens podem também dar-se a si mesmos, fazer justiça um ao outro, amar aqueles que os amam, viver inofensivamente no mundo, aparentar justos perante os outros e fazer muitas coisas que têm aparência de bem moral, como fizeram os pagãos e publicanos, e o apóstolo Paulo antes da conversão.

4. O homem não tem nem vontade nem poder para agir por conta própria em coisas espiritualmente boas, ou em coisas que relacionam com o seu bem-estar espiritual ou eterno; tais como conversão: regeneração, fé, arrependimento e coisas semelhantes a essas. Conversão não é a obra da criatura, mas de Deus, uma obra do Seu poder onipotente; pelo qual os homens são convertidos para Ele, do pecado e de Satanás, são resgatados do poder das trevas e transladados para o Reino do seu Filho amado. Nega-se expressamente que a regeneração ou renascimento pertença à vontade da carne ou a dos homens. Ela é atribuída ao próprio Deus e mais ninguém. Todos os homens não têm fé em Cristo, e em se tratando dos que têm, a fé destes não vem de si mesmos; é dom de Deus, da operação do Seu Espírito, do fruto e efeito da graça eleitora e eficaz. O arrependimento bíblico, que é para vida, não está no poder dos homens; estes, no estado natural, não têm verdadeira noção dos seus pecados nem qualquer tentativa por conta própria os levará ao arrependimento dos pecados, sem a graça eficaz de Deus. O verdadeiro arrependimento bíblico é o dom gratuito da graça de Deus.

5. Não há poder natural na vontade do homem, para desejar, escolher e efetuar coisas espiritualmente boas, não aparece só na experiência da natureza humana, mas também em todas aquelas Escrituras que representam o homem como poluído, inteiramente carnal, entregue ao pecado, escravo e morto nele; e não apenas impotente para fazer o bem, mas sob uma impossibilidade de fazer o que é bom; e de todas aquelas escrituras que declaram o entendimento, juízo e afeições sendo corruptos, pelo qual a vontade é grandemente influenciada e direcionada; e de todas as tais escrituras que intimam que toda a boa dádiva e todo o dom espiritual são de Deus, e que os santos em si somente desejam e agem pelo poder e sob a influência da graça de Deus; que opera neles tanto o querer como o efetuar da sua boa vontade. Eu prossigo

III. a inquirir, isto é, a questionar se as palavras do texto em consideração afirmam o poder e liberdade da vontade do homem em escolher aquilo que é espiritualmente bom. A qual eu respondo.

1. Supondo que aquilo que está sendo proposto aqui seja espiritualmente bom, e o que o que está sendo recusado seja espiritualmente mal; não segue, portanto, que o homem tem o poder de escolher um e recusar o outro; pois, como Lutero diz: “As palavra são imperativas, elas não afirmam nada senão o que deveria ser feito, pois Moisés não fala:” Tendes o poder de escolher, mas escolha, guarda, faça”. Ele entrega o preceito de fazer, mas não descreve o poder do homem.”

2. Vida e morte, benção e maldição, devem ser consideradas em sentido civil, e delinear as dispensações externas da providência de Deus, com o respeito ao bem e a ruína temporária, que iriam suceder ao povo de Israel, de acordo com o seu comportamento civil. Aquele povo estava sob o governo imediato de Deus, Ele era a sua cabeça e rei político. Moisés, por Ele, deu-lhes um sistema de leis como entidade política; segundo a sua obediência às leis, eles e a sua semente viveriam bem e gozariam de todas as benções espirituais na terra de Canaã, como aparece no versículo 16, 20; mas se desobedecessem, eles poderiam esperar maldição e morte, cativeiro e a espada, e não teriam prolongados os seus dias na terra que iriam possuir, como é evidente nos versículos 17, 18. Portanto, Moisés os aconselha a escolher a vida, isto é, viver de acordo com as leis dadas a eles como um corpo político; para que eles, debaixo da governança prazerosa que estavam, pudessem viver confortavelmente, e eles e a sua posteridade pudessem gozar de todas as benções de uma vida civil na terra prometida. O que é parecido com tal caso e pode servir de exemplo disso, é como se uma pessoa pudesse representar as leis constitucionais saudáveis da Grã Bretanha, preservadas sob o governo de sua majestade, o rei George, com toda a benção e alegria consequente; e também a condição miserável e triste seria viver debaixo de um falso arrogante; e depois observa que seria muito desejável, aconselhável e aceitável viver em paz debaixo de um, ao receber o jugo do outro. Escolher um é como escolher liberdade e propriedade, benção e vida, e tudo que é de valor num sentido civil; ao escolher o outro é como escolher escravidão e ora poder, ora maldição e morte, e tudo que é destrutivo e miserável. Agora é aceito que o homem tem o poder de aprovar e desaprovar, agir e não agir, em coisas de natureza civil; portanto, estas palavras não podem servir nem devem ter o seu lugar ou preocupação na controvérsia sobre o poder e a liberdade da vontade em coisas espirituais.

Rodapé

i Erasmo em Lutero. De Selvo Arbitr. c. 95 e 97, pp 145, 148; Curcellaei Institut. Rel. Christian. I. 6, c. 13, sect. 2, p. 400: Limborch. Theolog. Christ. I. 4, c. 13, sect. 22, p. 376, Whitby, pp. 317. 318; ed. 2. 309, 310.

ii Vide Gale’s Court of the Gentiles, part. 4. b. 3, c 1, sect. 4, pp. 13, 14.

iii Verba adducta sunt imperativa; nihil dicunt, nisi quid fieri debeat; neque enim Moses dicit. eligendi haves vim, vel virtutem; sed elige, serva fac, Praecepta faciendi tradil non autem describit hominis facultatem. – Lutero, de serv. arbitr, e. 97, p. 148.

 

Autor: John Gill,D.D.
Tradução: Benjamin G.Gardner, 04/2014
Revisão: Charity D. Gardner e Calvin G Gardner, 05/2004
Revisão gramatical: Erci Nascimento, 08/2014
Fonte: www.PalavraPrudente.com.br