A lei que foi cravada na cruz

Aníbal Pereira dos Reis

A LEI QUE FOI CRAVADA NA CRUZ U

"...na sua carne desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos contidos em ordenanças..." (Efésios 2.14-15)

"e havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz" (Colossenses 2.14)

Dois vocábulos dessa Escritura precisam ser estudados: CEDULA e ORDENANÇAS.

1) - A palavra KEIROGRAPHON do v.l4 (única vez adotada no grego original de todo o Novo Testamento), traduzida por CEDULA, em sua etimologia, significa ATA, MANUSCRITO, AUTÓGRAFO. Por não encontrar no latim popular do seu tempo um vocábulo que o vertesse, Jerônimo simplesmente a transliterou na Vulgata: CHIROGRAPHUM. Matos Soares, de sua parte,também não achou em português um vocábulo que o traduzisse. Imitou Jerônimo: transliterou também por QUIRÓGRAFO. À época de Paulo, KEIROGRAPHON exprimia com precisão um DOCUMENTO PELO QUAL ALGUEM RECONHECIA SEU DEBITO DE DINHEIRO A OUTREM, UMA OBR.IGAÇAO PASSADA POR UM DEVEDOR. Era um escrito de divida, uma espécie de nota promissória atual ou uma duplicata. É este o sentido dessa palavra CEDULA (=KEIROGRAPHON) nesta passagem,exigido,aliás, pelo próprio contexto. O KEIROGRAPHON (=CEDULA), a nota promissória do nosso débito insolvente posta "contra nos" nas Mãos de Deus, o nosso CREDOR. Em Cristo,Deus,o nosso CREDOR, cravou na cruz esse KEI' ROGRAPHON, riscando-o, anulando-o,do nosso débito,tornando a escrita da divida sem efeito. Há ainda comerciantes que, quando pagas, cravam num prego afixado na parede ou num prendedor feito á semelhança de uma pequena mão, as notas promissórias ou as duplicatas com um risco em forma de L para lembrar sua liquidação. KEIROGRAPHON é uma metáfora da Lei Mosaica, sobretudo em seu aspecto moral, que nos fazia grandes e insolventes devedores, porquanto, ao proibir o pecado, fazia-o, contudo, mais abundante, escravizando-nos e levando-nos a morte. (cf. Rm.5:20:7:5-13;JJ Cor.3:6;Gl .5:1). Em Ef.2:15 encontra-se, por paralelismo, outra referencia a Lei Mosaica como um documento implacável por nos acusar (DOGMASIN). Deus o desfez, tirou-o do nosso meio, matando-o na Carne de Jesus Cristo Nosso Senhor. E em Cl.2:14,segundo a metáfora do KEIROGRAPHON (CÉDULA), Jesus deu cabal satisfação da Lei por haver nEle tal documento sido por Deus cravado na cruz. Aquela sentença de morte contra nós proveniente da Lei, foi ,com a Morte de Cristo, cancelada porque, em tendo nascido sob a Lei (Gl.4:4), Deus O fez "pecado" e "maldito" a fim de, em Sua Pessoa, riscar o documento que nos condenava (cf.II Cor.5:21;Gl.3:l3). Como fim ou termo da Lei , Cristo, ao tomar "por nós" (Gl 3.13) sobre Si as maldições da Lei, Ele, cumprindo a Lei, nos libertou da maldição da mesma Lei e, em conseqüência, da própria Lei. É relevante uma observação! Não abrogou Ele a Lei como se antes dEle ela houvesse se constituído em recurso da salvação. Abrogou-a Deus ao cravá-la na cruz como simples norma vinculante na vigência do Novo Testamento.

2) - O vocábulo plural ORDENANÇAS adotado por Almeida no texto de Cl.2:13-l4 retro transcrito, em hipótese alguma se restringe às cerimônias judaicas. Os modernos cumpridores do sábado, na esteira da exegese católica, defendem o ponto de vista de a palavra ORDENANÇAS figurar a sistemática litúrgica do Antigo Testamento composta de uma multidão de ordenações rituais, sendo ela (e somente ela) cravada na cruz com a permanência em vigor das disposições morais da Lei. Dizem que Deus cravou na cruz a "lei cerimonial" apenas. A "lei moral" não. ( Entreaspeamos a "lei cerimonial" e a "lei moral" porque essa distinção defendida pelos sabadeadores não tem suporte bíblico).

a) - A questão é com muita facilidade dirimida se recorrermos ao grego, o idioma original do Novo Testamento. DOGMASIN, cujo nominativo singular é DOGMA e cujo genitivo do mesmo numero DOGMATOS, quer dizer DECRETO ou PRECEITO. Jerônimo, no latim da sua Vulgata, neste ponto foi feliz ao registrar: "CHIROGRAPHUM DECRETI". Encontramo-lo no texto grego 5 vezes: Em Lc.2:l em alusão ao decreto do recenseamento; em At.16:4 em referência aos decretos do Concilio de Jerusalém; em At.17:7 em menção aos decretos de Casar; em Ef.2:15 em relação aos decretos ou imposições da lei dos mandamentos; e em Cl.2:14 que o texto do nosso exame. Em Cl .2:20 deparamo-nos com a forma verbal DOGMATIZOS e se tratasse de ordenanças rituais o texto teria se valido do termo DIKAIOMA aplicado no plural DIKAIGMATA com este sentido ao aludir a cerimônias judaicas em Hb.9:l,lO. Ou ter-se-ia valido do vocábulo ETHOS que significa rito e costumes, encontrado em Lc.l:9;Jo.l9:40;At.6:14; 15:1 (onde especificamente se refere ao rito da circuncisão):l6:2l;2l: 2l;25:l6;26:3;28:l7 e Hb.1O:25). Mediante esta análise conclui-se que o termo plural'ORDENANÇAS" da versão de Almeida em lugar de "DECRETO" de outras traduções alude aos preceitos morais da Lei e não aos cerimoniais.

b) - Há, outrossim, um destaque valiosíssimo a se frisar. A Epistola aos Colossenses destinara-se aos cristãos gentios de Colossos, da Província da Frigia, na Ásia Menor. Dirigia-se, portanto, a cristãos procedentes da gentilidade, incircuncisos na carne (cf.v.13), isentos das disposições litúrgicas da Lei. Sabemos, contudo, que apenas os judeus estavam sujeitos ao cerimonialismo centralizado no Templo de Jerusalém. As"ORDENANÇAS" aludidas em Cl .2:14, sem sombra de dúvida, são os mandamentos ou postulados morais da Lei.

c) - A leitura atenta do texto também nos convence de referir-se a palavra "ORDENANÇAS" aos preceitos morais (e não cerimoniais) da Lei. Note-se, com efeito, o v.13: "E, quando vós estáveis mortos nos pecados, e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com Ele, perdoando-vos todas as OFENSAS". Se os gentios incircuncisos não estavam sob a sistemática cerimonial judaica, suas ofensas não eram causadas pela transgressão dos preceitos cerimoniais. As ofensas procediam, portanto, das suas transgressões contra as disposições morais da Lei. E Deus os perdoou havendo riscado a cédula que era contra eles nos seus decretos, ou preceitos ou mandamentos morais. E não cerimoniais.

d) Também à luz da Carta aos Hebreus é inadmissível o entender-se a expressão DOGMASIN (=DECRETOS ou ORDENANÇAS) como elementos simplesmente cerimoniais. Com efeito, no contexto litúrgico do judaísmo salientava-se o sacerdócio levítico. Os próprios observantes do sábado hebdomadário,de resto, concordam em ser aquele sacerdócio parte da sistemática cerimonial. Não o admitem como lei moral'. A leitura do Pentateuco, sobretudo dos seus livros:Levitico e Números, nos convence do fato de se erguer todo o ritualismo judaico sobre o sacerdócio levitico ou araônico. Ora, foi sob esse sacerdócio que o judeu recebeu a Lei. A Lei que não aperfeiçoou coisa alguma (cf.Hb.7:19). O sacerdócio levítico ou segundo a ordem de Arão, de sua parte, conquanto oferecesse dons e sacrifícios também nada aperfeiçoou (cf.Hb.9:9), "porque a Lei constituiu sumo sacerdotes a homens fracos" (Hb.7:28). Mudou-se o sacerdócio ao extinguir-se o sacerdócio levítico com a presença do perpétuo Sacerdócio de Jesus Cristo, o Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque: "De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico ( porque sob ele o povo recebeu a Lei), que necessidade havia logo de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão? Porque, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também a mudança da Lei" (Hb.7:ll-l2). Jesus Cristo, portanto, deu cumprimento a Lei como deu cumprimento as profecias a Seu respeito anunciadas. Satisfeita a Lei e cumpridas as profecias, evidentemente se tornaram ambas caducas."Porque o precedente mandamento é ab-rogado por causa da sua fraqueza e inutilidade" (Hb. 7:18) e, em tendo sido "a lei a sombra dos bens futuros"(Hb.10:1), o primeiro concerto, o da Lei, foi removida e foi estabelecido o segundo, ou seja o de Jesus Cristo Hb.10:9). Jesus Cristo, "perfeito para sempre" (Hb.7:28 b). Aliás, se aquele primeiro fora irrepreensível, nunca se teria buscado lugar para o segundo" (Hb.8:7). Ao dar cumprimento a Lei (cf.Mt.5:18;Cl. 2:13-14;Rm.. l0:4;Hb.7:ll-12), Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu o "mais perfeito tabernáculo" (Hb.9:11).

O apego ao dia sabático como necessidade de se obedecer e executar a lei conspurca a plena suficiência da Obra Salvífica de Nosso Senhor Jesus Cristo. É significativo agarrar-se a fiapos de sombras...

Fonte: extraído do livro 'A Guarda do Sábado' págs. 95-99, ed. Caminho de Damasco –

Dr. Aníbal Pereira Reis - ex-padre católico romano