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CAPITULO 6 – A EXPIAÇÃO

Capitulo 6 do livro DOUTRINA FORTE

A EXPIAÇÃO

O estudo da verdade redentiva é muito importante, tendo a ver com o destino eterno da alma do homem; por causa de sua importância, tanto para a glória de Deus quanto para a esperança do homem, esse assunto há muito é alvo dos esforços malignos de Satanás, com o resultado de que é muitas vezes enfeitado com idéias carnais e errôneas. Em nenhuma parte da verdade redentiva tal fato é mais relevante do que com relação à expiação. A expiação de Cristo é há muito um assunto de interesse intenso nas fileiras cristãs, e é assim que tem de ser, pois ao lidar com a obra redentiva de Cristo, o destino eterno da alma depende de entendermos corretamente essa questão. Esse é um assunto complexo e é fácil omitir um de seus importantes aspectos ou se confundir com teorias e raciocínio humano. Bem se disse que:

A expiação é um grande assunto com muitos lados. Pode-se abordá-la a partir de muitos ângulos. É fácil ser parcial e incompleto ao lidar com o material do Novo Testamento. Deve-se tomar cuidado para que se incluam todos os aspectos vitais do assunto. — E. Y. Mullins, The Christian Religion In Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Sua Expressão Doutrinária), p. 311. Judson Press, Philadelphia, 1932.

Talvez uma coisa que tenha levado a mais teorias errôneas acerca da expiação do que qualquer outra coisa é uma perspectiva falha sobre o pecado; pois não dá para se entender de modo correto a expiação sem que se tenha uma perspectiva correta sobre o pecado. Enquanto uma pessoa tiver uma opinião fraca sobre o pecado, sua opinião acerca da expiação de Cristo será de modo correspondente fraca e falha. Se o homem jamais tivesse pecado, não haveria necessidade alguma de uma expiação de espécie alguma; por outro lado, se a queda do homem não lhe fez mais mal do que uma ferida superficial no joelho ou uma unha encravada, espiritualmente falando, então é claro, a expiação necessária para consertar esse prejuízo naturalmente não seria muito importante. O Dr. J. M. Pendleton diz:

Se o pecado não tivesse existido, não teria havido nenhuma expiação. Se não tivesse havido expiação, saberíamos bem menos de todos atributos divinos do que sabemos hoje, e conseqüentemente muito menos do caráter divino. Assim parece que a existência do pecado, a coisa abominável que Deus odeia, foi de tal forma anulada a ponto de dar ao universo perspectivas mais sublimes e abrangentes da perfeição de Deus. Essa é a maravilha das maravilhas. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 237. American Baptist Publication Society, Phila¬delphia, 1878.

Quando consideramos a partir do ponto de vista humano, o pecado é a maior calamidade que poderia sobrevir à humanidade. Por isso, este capítulo trabalhará de acordo com as seguintes premissas:

(1). Que a raça humana inteira estava verdadeiramente em Adão — na sua semente — e quando ele foi colocado no jardim do Éden, foi uma representação federal, ou seja, ele representou a todos.

(2). Que Adão pegou deliberada, consciente e rebeldemente do fruto proibido no jardim, e que seu ato não foi inconseqüente, mas foi rebelião absoluta contra a vontade claramente revelada de Deus, e foi de fato o homem declarando sua independência de Deus.

(3). Que esse ato estava carregado das conseqüências mais horrendas, pois trouxe um estado de apostasia em toda as raças, de modo que desde esse tempo em diante todos os filhos de Adão nasceriam no mundo com uma aversão a Deus e uma vontade inclinada para com o pecado.

(4). Que essa condição, sendo forjada na própria constituição natural do homem não dá para modificar nem remediar, mediante nenhuma sabedoria, obra ou vontade interna do próprio homem.

(5). Que esse estado de depravação se estende totalmente a todas as faculdades do homem, colocando-as debaixo do domínio do pecado, de modo que “Não há um justo, nem um sequer” (Romanos 3:10,12). O que se quer dizer com depravação total não é que toda pessoa já é tão má quanto possa ser, mas apenas que por natureza não há nada de bom nela.

(6). Portanto, que a vontade, intelecto e emoções do homem estão completamente num estado de escravidão pecaminosa da qual eles não podem se libertar e nem podem funcionar de um modo espiritual a não ser se a graça de Deus entrar em atividade.

(7). Portanto, que a única solução possível para esse estado horrível do homem está num plano que foi originado, operado e comprado divinamente para remover a pecaminosidade do homem e para recriá-lo em santidade. Esse plano divino conhecemos pelo nome de expiação.

A expiação tem muitas facetas e aspectos; alguns dos termos utilizados são sinônimos da palavra “expiação”, enquanto outros expressam um lado distinto da obra redentiva de Cristo. Por exemplo, considerando-se quanto aos resultados para Deus, podem ser usadas as palavras “apaziguamento”, “reparação”, “propiciação”, “reconciliação” ou “satisfação”. Considerando-se a partir do lado humano dos resultados, podem ser usadas as palavras “salvação” ou “perdão”. Considerando-se a partir do lado legal podem ser usadas as palavras “justificação” ou “absolvição”. Considerando-se a partir de uma transação comercial, podem ser usadas as palavras “pagamento de resgate” ou “redenção”. Não seria possível nos aprofundarmos num estudo de cada uma dessas palavras, mas confiamos em que no andamento desse estudo, veremos que todas essas palavras se ajustam em seu devido lugar.

SEÇÃO 1

A PREMISSA DA EXPIAÇÃO.

“Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação” (Romanos 5:10-11).

Esse é o único lugar no Novo Testamento em que se vê a palavra inglesa atone¬ment (expiação), e mesmo aí a palavra grega assim traduzida é a forma substantiva do verbo que se traduz “reconciliado” duas vezes no versículo 10, de modo que talvez a melhor tradução aí teria sido “reconciliação”. No Antigo Testamento, a palavra inglesa atone¬ment aparece mais de setenta vezes, e é a tradução da palavra hebraica kaphar. Essa mesma palavra hebraica é também traduzida “reconciliar”, “reconciliação”, “ser misericordioso”, “purificar”, “pacificar”, “apaziguar” e “absolver”, o que dá uma idéia geral do que se quer dizer com a palavra. A primeira vez em que aparece na Bíblia é em Gênesis 6:14, onde é traduzida “betumarás por dentro e por fora com betume”, o que mostra que o significado da palavra é “cobrir por completo”.

Com o uso da palavra premissa no título desta seção, nossa intenção é estabelecer o sentido básico da expiação, pois só dá para entender de modo correto quando se usam termos devidamente definidos. Portanto, notamos:

I. O SIGNIFICADO DA EXPIAÇÃO.

Nos escritos teológicos a palavra expiação tem uma ampla definição, mas para os propósitos de nosso estudo presente, limitar-nos-emos a usarmos o termo no sentido bíblico de reconciliação. T.P. Simmons diz acerca da palavra grega traduzida “reconciliação” (katallage):

De acordo com o uso do grego, a palavra “expiação” pode ser usada com o sentido de provisão da base objetiva da salvação, na qual temos uma expiação em potencial, ou com o sentido da própria realização da salvação, na qual temos uma expiação real na aplicação dos benefícios da morte de Cristo e na oferta de Seu sangue no templo celestial. —¬Systematic Study of Bible Doctrine (Estudo Sistemático da Doutrina da Bíblia), p. 241. Associated Publishers, Day¬tona Beach, Florida, 1969.

Contudo, com o termo “expiação potencial” não devemos entender de modo errado que a palavra chega a ser usada na Bíblia de tal modo que contradiga seu próprio sentido intrínseco, pois uma expiação que não expia não é expiação, e uma reconciliação que não reconcilia não é reconciliação, e uma cobertura que não cobre não é cobertura. Não cremos que essa palavra chega a ser usada na Bíblia de um modo abstrato, mas que sempre se refere à aplicação real dos benefícios salvadores da obra redentiva de Cristo, mas vamos considerar isso com mais profundidade quando formos considerar a extensão da expiação.

A doutrina da expiação tem suas raízes no Antigo Testamento onde é muitas vezes apresentada simbolicamente, e embora planejemos dedicar uma seção inteira à expiação conforme prefiguram os sacrifícios levíticos, será bom observar de passagem como se usa a palavra ali.

Conforme já mencionamos, a palavra hebraica kaphar aparece primeiro em Gênesis 6:14, onde é usada num sentido puramente físico, e tem o significado de “cobrir por completo”. O próximo lugar em que essa palavra aparece é em Gênesis 32:20: “E direis também: Eis que o teu servo Jacó vem atrás de nós. Porque dizia: Eu o aplacarei com o presente, que vai adiante de mim, e depois verei a sua face; porventura ele me aceitará”. Essa passagem mostra ainda o sentido dessa palavra, que tem a ver com o apaziguamento ou reconciliação de alguém que foi ofendido. São muitas as vezes em que essa palavra aparece em Êxodo, Levítico e Números, mas citamos Êxodo 30:16 para revelar mais o significado da palavra: “E tomarás o dinheiro das expiações dos filhos de Israel, e o darás ao serviço da tenda da congregação; e será para memória aos filhos de Israel diante do SENHOR, para fazer expiação por vossas almas”.

Embora reconheçamos que esse sentido tenha a ver com uma expiação típica, porém deve-se também reconhecer que o propósito da representação apontava para o propósito da expiação verdadeira, e assim esse sentido é importante aqui. Seu propósito era “fazer expiação” pela alma, e assim se não cumprisse esse propósito, não era expiação. Por isso, Hebreus 2:17 diz acerca da verdadeira expiação de Cristo: “Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo”.

O texto com o qual começamos esta seção revela muito mais sobre o que é a expiação e o que ela faz. Note as seguintes coisas nessa passagem: (1). Tem relação com alguns que no passado haviam sido inimigos, mas que agora estão reconciliados. (2). Realizou-se a reconciliação “pela morte de seu Filho”, e não por qualquer coisa que o homem pudesse fazer, pois foi realizada enquanto ainda éramos inimigos de Deus. (3). O resultado dessa reconciliação é que aqueles que são reconciliados com Deus serão salvos pela vida de Cristo; isto é, ser-lhes-á imputada a vida justa dEle. (4). Não só é essa reconciliação realizada pela morte de Cristo, mas é também recebida mediante Cristo, de modo que o homem não fez nada em parte alguma da expiação, mas é totalmente obra de Deus. 2 Coríntios 5:18-19 dá prova disso: “E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação; Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pós em nós a palavra da reconciliação”. O único lugar em que há ações humanas nesse assunto é no serviço que o homem presta depois de sua salvação. Nessas passagens, é evidente que a expiação de Cristo é a obra redentiva de Deus em favor do homem pecador. Portanto, J. M. Pendleton define a expiação como segue:

É óbvio que a expiação é aquilo que conserta um dano, dá satisfação, faz reparação. Com essa perspectiva da importância do termo, vamos considerar a expiação de Cristo. O que é? É a expiação do pecado mediante a satisfação prestada à lei e justiça de Deus mediante a obediência e morte de Cristo. —Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 223. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.

E. G. Robinson dá uma definição de certo modo mais abrangente acerca da expiação quando diz:

A palavra expiação é usada com grande extensão de significado; para denotar o que os estudiosos queriam dizer com satisfação e o que as Escrituras querem dizer com propiciação e reconciliação; uma palavra que tem dois lados, representando, com relação a Deus, a expiação da culpa, e, com relação ao homem, sua reconciliação com Deus. Por ser uma reconciliação, deve-se entender o termo, quando empregado para designar o ofício sacerdotal de Cristo, como incluindo, como seu sacerdócio, tudo o que ele realizou por nós em sua vida bem como tudo o que ele conquistou para nós em sua morte. A expiação de Cristo foi sua inteira obra objetiva na terra, garantindo naqueles que crêem nele sua renovação subjetiva, e assim a salvação final deles. — Christian Theology (Teologia Cristã), p. 255. Press of E. R. Andrews, Rochester, N. Y, 1894.

O texto que usamos no começo desta seção conecta a expiação com a morte de Cristo; sim, a reconciliação é manifestada como conseqüência natural da morte de Cristo, e isso é verdadeira com relação à maioria das referências à morte de Cristo, pois sem a remissão sendo o propósito de Deus, a morte de Cristo foi algo trágico e inútil. Não só isso, mas as Escrituras declaram que isso foi o único modo que Deus poderia de forma coerente redimir a humanidade. “Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei” (Gálatas 3:21). Mas na medida em que Deus achou por bem dar Seu próprio Filho para morrer por nós, temos de presumir que esse não é só o melhor e mais sábio plano para a redenção do homem, mas que esse é também o plano mais bem adequado para glorificar a Deus.

O pecado é antagônico à natureza de Deus. Assim, a expiação que tem de remover o impedimento entre Deus e o homem tem de ser algo que ministrará à natureza divina, e que satisfará a santidade divina e possibilitará, sem violar Sua própria natureza, que Deus perdoe o pecador. — T. T. Shields, The Doctrines of Grace (As Doutrinas da Graça), p. 98. Pub¬lisher, sem data.

Não dá para compreender de modo correto o sentido da expiação, a não ser que a vejamos como evidência do amor inigualável de Deus por nós, conforme está escrito: “Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva” (João 4:10). A expiação não é baseada em qualquer coisa vista ou antevista no homem, mas exclusivamente nos propósitos de Deus e Seu amor por suas criaturas indignas. A expiação significa que o coração de amor de Deus estava tão cheio que Ele pagou o preço supremo para que Ele pudesse reconciliar consigo aqueles que eram feios, indignos e até indesejados de Seu amor. “Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5:8). Quem pode sondar o amor de Deus? “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (João 15:13). Mas se essa é a regra mediante a qual se mede o supremo amor humano, quanto é a medida do amor supremo que Cristo, a própria jóia celestial, morreu por Seus inimigos mais amargos?

II. OS ELEMENTOS DA EXPIAÇÃO.

Com isso se quer dizer os diferentes atos redentivos que fazem parte, e compõem a expiação. Sabemos, é claro, que o evangelho tem como suas bases três fatos: (1). A vida sem pecado de Jesus pela qual Ele constantemente honrava a Deus e Sua Lei, e manifestava com isso que a Lei não tinha reivindicações sobre ele para exigir Sua morte pelo pecado. (2). Sua morte na cruz, apesar de Sua vida sem pecado, pela qual Ele sofreu a pena do pecado no lugar do pecador culpado. (3). Sua ressurreição para a vida de novo depois de três dias e três noites no túmulo, após o que Ele subiu de volta ao Céu ali para fazer uma oferta de Seu próprio sangue sobre o verdadeiro altar no céu, e para apresentar sua própria justiça imaculada a Deus no lugar da injustiça do pecador. Contudo, embora esses elementos façam parte da expiação não são os elementos aos quais nos referimos principalmente, mas estão incluídos nesses elementos.

É bom declarar neste ponto que esses elementos são muitas vezes mencionados como a “satisfação de Cristo”, que é um termo de importância semelhante à palavra “expiação”, mas é talvez não tanto restritivo em sentido como deve. Poderia ser uma palavra melhor para se usar neste estudo não fosse pelo fato de que tantas pessoas entendem errado o significado da palavra, e pensam que significa em vez disso a satisfação de Cristo consigo mesmo.

O primeiro elemento da expiação que queremos considerar é a propiciação, acerca da qual lemos: “E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 João 2:2). “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados” (1 João 4:10). Nesses dois exemplos, a palavra grega é hilasmos. “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus” (Romanos 3:25). “E sobre a arca os querubins da glória, que faziam sombra no propiciatório; das quais coisas não falaremos agora particularmente” (Hebreus 9:5). Nesses dois textos, a palavra “propiciação” e “propiciatório” são ambas traduções da palavra grega hilasterion, uma palavra de importância semelhante à palavra hilasmos acima.

O último texto é importante nesse assunto porque mostra que o propiciatório no Tabernáculo e Templo tinha o significado típico de prefigurar a obra redentiva de Cristo numa de suas fases. Mas o tabernáculo era muito mais do que só o propiciatório. Assim também a obra redentiva de Cristo é muito mais do que só a propiciação. Se compararmos esses quatro textos, conseguiremos entender melhor o que essa palavra quer dizer. Note: (1). Que todas essas palavras tinham a ver com o pecado. (2). Que a propiciação é a provisão de Deus para o pecado. (3). Que Deus nos proveu propiciação por causa de seu amor por nós. (4). Que essa propiciação deveria ser apenas mediante fé no sangue dele, de modo que não se aplica a ninguém, a não ser aos crentes. Teremos ainda mais a dizer sobre a frase “e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 João 2:2), sob a terceira divisão deste estudo. (5). Que essa propiciação é a declaração da justiça de Deus para a remissão de pecados que são passados. (6). A propiciação não é um ato de dívida para muitos, mas só vem na longanimidade de Deus. Alvah Hovey observa acerca da palavra “propiciar”:

Nos escritores clássicos, inclusive Josefo, esse verbo significa apaziguar ou tornar propício, quer por sacrifício, ou presente, ou canção; e é quase sempre dirigido a um deus… Com a conexão em que se empregam essas palavras, é óbvio que Deus era imaginado como propício por intermédio da morte de Cristo; ou que o exercício de sua graça para com os culpados era garantido por essa morte. — Manual of Systematic Theology (Manual de Teologia Sistemática), pp. 211 212. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1880.

No Tabernáculo o propiciatório não proporcionava perdão a qualquer um; pois exigia-se a aplicação anual do sangue pelo sumo sacerdote antes da declaração do perdão. Assim também na expiação antitípica, não é suficiente que Cristo tenha morrido uma morte vicária pelos pecadores, mas tem de haver a aplicação individual dos benefícios da crucificação para os eleitos antes que eles sejam reconciliados com Deus. Daí, parece que a palavra “propiciação” tem a ver com a morte sacrificial de Cristo, no que se refere ao resultado geral — o apaziguamento de Deus pelos pecados do homem.

Mas outro elemento na expiação ou satisfação de Cristo é a “reconciliação”, que é uma tradução da palavra grega katallage. Aparece só quatro vezes no Novo Testamento, a saber, Romanos 5:11; 11:15; 2 Coríntios 5:18,19. A forma verbal é katallasso, que aparece só em Romanos 5:10 (duas vezes); 1 Coríntios 7:11; 2 Coríntios 5:18, 19,20. Essa palavra sugere o resultado da obra redentora de Cristo em sua relação tanto com Deus quanto com o homem; eles são “reconciliados”. Alguns negam que Deus precisasse se “reconciliar”, e que essa reconciliação tenha a ver apenas com o homem. A. W. Pink bem disse acerca disso:

Entretanto, embora as Escrituras falem de reconciliação, não de Deus com o homem, porém do homem com Deus, e reconciliação apenas mediante o sangue da cruz (Colossenses 1:20); mas disserta, na linguagem mais clara e forte, um real e eficaz “sacrifício”, “expiação”, e “propiciação”, oferecidos a Deus pelo Senhor Jesus; todos esses termos expressam ou indicam uma satisfação real prestada a Deus pelos pecados e foi tal satisfação, sem a qual não poderia haver perdão algum. De modo especial, é necessário ter isso em mente, pois os socinianos e outros heréticos que negam ou explicam de modo errado a expiação, insistem muito nessa questão, que as Escrituras não falam de um Deus reconciliado. Portanto, embora não creiamos que a expiação produziu uma mudança na mente de Deus, a ponto de desviá-Lo de ódio para amor, pois Ele amou os eleitos com um amor eterno (Jeremias 31:3), ou que foi um preço pago para conquistar Seu favor, porém houve um sacrifício oferecido, uma propiciação feita, por meio da qual o pecado foi perdoado, apagado e exterminado para sempre. — The Doctrine of Reconcili¬ation (A Doutrina da Reconciliação), pp. 3 4. Associated Publishers and Authors, Inc., Grand Rapids, Michigan, 1971.

O próprio sentido da palavra “reconciliação” torna óbvio que a expiação não é algo abstrato que se possa aceitar ou não, mas que é a aplicação real da obra salvadora de Cristo na alma, pois como é que alguma pessoa pode se reconciliar com Deus sem, ao mesmo tempo, ser salva; por outro lado, é de igual forma absurdo pensar numa pessoa sendo salva sem ser reconciliada com Deus. É verdade que a Palavra diz que fomos reconciliados com Deus quando ainda éramos inimigos (Romanos 5:10), mas também nos diz que Cristo matou toda inimizade enquanto estava na cruz (Efésios 2:16). É por isso que a expiação de Cristo é limitada, e não se pode compreendê-la de outra forma, mas esse é o assunto da nossa próxima divisão.

“Redenção” é outro elemento da expiação; a palavra “redimir” tem muito do mesmo sentido da palavra “libertar”, mas é mais específica porque apresenta o modo preciso de libertação. As palavras hebraicas mais comuns para “redimir” são goel, geullah, e padah (e seus derivados).; as palavras gregas usadas são agorazo, exagorazo, lutroo, apolutrosis (e seus derivados).

A idéia básica de todas essas palavras é “comprar”, “remir, por compra, do mercado de escravo”, “redimir pagando um preço”, “libertar pagando um resgate”. O substantivo grego mais comum é apolutrosis, que aparece dez vezes no Novo Testamento, das quais os seguintes são exemplos: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça” (Efésios 1:7). “E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna” (Hebreus 9:15). A palavra “remissão” contém três idéias principais quanto ao que ocorre numa pessoa que é redimida. (1). A remissão é um pagamento de resgate. Esse é o significado raiz de algumas das palavras traduzidas “redimir” (1 Timóteo 2:6). (2). A remissão é um resgate (Tito 2:14; Gálatas 1:4). Na última passagem, a palavra traduzida “livrar” é em outros lugares traduzida “resgatar”. (3). A remissão é uma soltura. Essa idéia é inerente no significado raiz das palavras gregas lutron, lutroo, lutrosis. Esse elemento da expiação fala do seu resultado em sua relação ao pecado. John Gill diz acerca da remissão:

Ora, todas essas perspectivas acerca da remissão indicam claramente para nós as seguintes coisas com relação à remissão do povo do Senhor. 1. Que essas coisas são anteriores à remissão deles, e que isso supõe, num estado de cativeiro e escravidão; eles são pecadores em Adão, e por transgressões reais; e assim entram nas mãos da justiça vingativa, ofendida pelo pecado; e que não absolverá os culpados sem que lhe seja dada satisfação; que é mediante o pagamento de um preço: a remissão por Cristo nada é mais ou menos do que comprar seu povo das mãos da justiça, em que eles são mantidos por causa do pecado; e essa remissão se faz com o preço de seu sangue. Portanto, esse preço de remissão é pago nas mãos da justiça em favor deles; daí, as Escrituras dizem que eles estão redimidos, ou comprados a Deus por seu sangue (Apocalipse 5:9). 2. …Que a remissão por Cristo é um livramento de tudo isso. É uma remissão do pecado; de todas as iniqüidades, originais e reais (Salmo 130:8. Tito 2:14), da justiça vingadora, por causa do pecado; da culpa do pecado… 3. Que a remissão por Cristo é tal livramento, libertando as pessoas completamente; os que estão mortos para o pecado mediante Cristo são libertos do poder condenador dela, e de seu domínio e tirania; e embora ainda não libertos da sua existência; mas, em pouco tempo, serão. — Body of Div¬inity (Corpo da Divindade), Book VI, ch. I, pp. 456, 457. Turner Lassetter, Atlanta, 1950,

III. A EXTENSÃO DA EXPIAÇÃO.

A perspectiva correta da extensão da expiação é necessariamente decidida pelo fato de se temos uma perspectiva correta acerca do significado da expiação, pois se alguém crê que a expiação é um sacrifício que foi feito por todo membro da raça caída de Adão, então no próprio sentido da palavra reconciliação, ele tem que crer que todos serão salvos finalmente, ou então terá dificuldade de escapar dos argumentos dos universalistas.

Não desejamos que nos entendam mal nessa questão; certamente cremos que um sacrifício adequado foi oferecido por Cristo para pagar pela redenção de todo pecador que já se arrependeu ou que irá se arrepender e confiar em Cristo. Também não cremos que terão pecadores que desejarão ser salvos, mas que não poderão, por não ter sangue suficiente derramado para sua redenção. Mas em concordância com a maioria dos batistas eruditos do passado, cremos que a expiação foi particular, isto é, que o sangue de Cristo foi derramado com indivíduos particulares em mente que receberiam a obra redentiva de Cristo. David Benedict, o historiador batista do passado, cuja confiabilidade de sua história jamais foi questionada pela maioria dos batistas, escrevendo em 1813 diz:

Houve diferentes compreensões acerca da doutrina da expiação. As antigas igrejas de modo bem uniforme sustentavam que essa doutrina era particular, isto é, que Cristo morreu somente pelos eleitos, e que em seu sofrimento assombroso, pelo qual não houve respeito algum, e pelo qual nenhuma provisão foi feita a ninguém mais da arruinada raça de Adão. Essa doutrina era chamada de calvinismo estrito ou plano de Gillite. Contudo, sempre houve alguns que achavam esse ensino forte demais para engolir. Mesmo assim, esses irmãos, não reconhecendo qualquer mérito na criatura, e sustentando que a salvação era somente pela graça, eram denominados arminianos, pois achava-se que não poderia haver meio termo entre os sistemas de João de Genebra e Tiago de Amsterdã. — General History of The Baptist Denomination (História Geral das Denominações Batistas), Vol. 2, p. 456. Manning and Loring, Boston, 1813.

Continuando, ele mostra que muitos desertaram o calvinismo modificado de Andrew Fuller no começo do século dezenove. Contudo, até mesmo esse calvinismo modificado de Andrew Fuller, conforme é apresentado em sua obra Gospel Worthy of all Acceptation (Evangelho Digno de Toda a Aceitação), é forte demais em seu tratamento da questão da expiação para a maioria dos batistas modernos, e muitos o difamariam como hipercalvinismo. Assim, os batistas modernos se afastaram muito das posições do passado.

Nosso Senhor mesmo disse: “Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora” (João 6:37). E de novo: “Assim como lhe deste poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste” (João 17:2). E há muitas outras passagens que também mostram que havia um pacto de graça feito no qual um número de pessoas específico foi dado a Cristo para ser redimido, e Ele chamará a todas elas no devido tempo, e as justificará e glorificará, das quais nenhuma se perderá no fim. Esses dois textos apresentam com clareza o que os teólogos do passado chamavam de graça irresistível — pois todos os que são dados a Cristo “virão a ele” — e de redenção particular — pois Cristo dá vida somente àqueles a quem o Pai Lhe deu no pacto da redenção.

É nesse ponto, porém, que confrontamos de frente ao preconceito mais forte, e este escritor confessa que ele outrora tinha o máximo de preconceito nessa questão até que Deus em Sua graça revelou a verdade a ele. Muitas pessoas dizem, da extensão da expiação: “Olha, creio na frase ‘Quem quer que’, ao que dizemos de coração: ‘Amém’”, mas isso não toca na principal questão aqui, pois as Escrituras representam o homem natural como sendo incapaz de querer aquilo que é bom pelas seguintes razões: (1). Ele está em escravidão a Satanás (2 Timóteo 2:25 26), e dessa escravidão só Deus em Sua graça pode resgatá-lo. (2). Ele é totalmente depravado, e não pode fazer bem algum (Romanos 3:9 12). (3). As coisas espirituais são tolice para ele, e assim ele as rejeita totalmente, até que a graça mude a atitude dele (1 Coríntios 2:14). (4). Ele não pode se sujeitar à lei de Deus, nem pode agradar a Deus enquanto sua natureza carnal o controla (Romanos 8:7 8). Não só isso, mas (5). As Escrituras declaram que até mesmo as pessoas mais religiosas da terra por natureza não conseguem ir até ele, para que ele lhes dê vida, conforme está escrito em João 5:40, e assim o homem não tem desejo algum de ser salvo.

Mas alguns farão a objeção de que a expiação é para o mundo inteiro, e assim deve significar para cada ser humano. Prontamente admitimos que as Escrituras falam de “reconciliando consigo o mundo”, mas sustentar que a palavra “mundo” significa “cada criatura humana” em todo caso é revelar ignorância ou cegueira preconceituosa. Este escritor certa vez ouvir outro pregador, ao tentar derrubar a doutrina da expiação limitada, dizer: “A palavra ‘mundo’ significa mundo”, porém essa declaração não significa praticamente nada, pois jamais definimos o sentido de uma palavra com a mesma palavra. Essa reconciliação do mundo é efetuada “não lhes imputando os seus pecados” (2 Coríntios 5:19), de modo que seja o que for este mundo, é um mundo que foi aceito aos olhos de Deus, pois nenhum pecado lhe é imputado. Será que esse “mundo” pode ser qualquer outra coisa além do “mundo” dos eleitos?

A palavra “mundo” (grego kosmos) se usa em pelo menos treze significados diferentes no Novo Testamento. Portanto, o contexto tem de decidir em cada caso a que se refere a palavra. Veja o Apêndice II: “Estudando a Palavra ‘Mundo’”. Todas essas coisas tornam tolice da pior espécie sustentar que a palavra “mundo”, onde tem relação com expiação, tem de se referir a toda a humanidade; e isso se torna ainda mais óbvio quando consideramos que a “expiação” significa reconciliação, mas só um universalista afirmará que toda a humanidade acabará se reconciliando com Deus. Ainda que não houvesse outros fatos a considerar senão o sentido de “expiação” (que não é o caso), isso bastaria para restringir a expiação apenas aos salvos, pois como pode alguém se reconciliar com Deus e não ser salvo? Ou como pode alguém ser salvo e não ser reconciliado com Deus?

Se voltarmos ao Antigo Testamento, onde a doutrina da expiação tem suas raízes, veremos essa mesma verdade, pois jamais encontraremos uma expiação que realmente não expie. Freqüentemente, lemos a declaração: “E o sacerdote por eles fará propiciação, e lhes será perdoado o pecado” (Levítico 4:20, 26,31,35; 5:10,13,18; 6:7, etc.). Aliás, não parece haver um único exemplo em que uma expiação foi feita em que não haja perdão, de modo que os fatos das Escrituras nos compelem a crer que quando se faz a expiação, é também aplicada, e o perdão é garantido, e se não houver perdão, então obviamente não houve expiação por esse indivíduo. Alexander Carson bem diz:

Há muitos que reivindicam pela expiação de Cristo. Mas o fato é que eles a negam tanto quanto os opositores públicos. Eles supõem que é uma expiação condicional, eficaz apenas para aqueles que cumprem certos termos. É evidente, porém, que uma expiação condicional não é expiação no devido sentido da palavra; pois uma expiação tem de expiar os pecados, exatamente como um pagamento cancela uma dívida. Onde, então, houve uma expiação real, nunca mais se poderão punir os pecados já expiados, assim como também não se cobra uma segunda vez uma dívida já paga. Seria injusto da parte de Deus cobrar a dívida na conta do homem, uma dívida que foi inteiramente paga pelp fiador do homem. Pode-se alegar que um homem pode pagar as dívidas de outro homem sob certas condições; e que se essas condições não forem cumpridas, a dívida ainda poderá ser cobrada do devedor. Mas é evidente que, em tal caso, a garantia realmente não paga a dívida até que se cumpram as condições, ou se ele a pagou condicionalmente, ele é reembolsado antes que seja cobrada do devedor. Em todo caso assim, a dívida não é realmente paga. Mas Jesus pagou a dívida. Ele já fez expiação; e se aqueles pelos quais ele morreu não são absolvidos, a dívida é cobrada uma segunda vez. Ele jamais poderá ser reembolsado. — The Doctrine of the Atonement (A Doutrina da Expiação), pp. 94 95. Edward H. Fletcher, New York, 1853.

Aqueles que defendem uma expiação geral sem dúvida têm essa posição porque acham que estão lutando por uma esperança e certeza maior de salvação para todos os homens, porém se a expiação for geral o suficiente para incluir qualquer pessoa que não for salva no final, então é uma expiação falsa, pois de fato não faz expiação alguma por eles. Preferimos acreditar que Cristo morreu para redimir cada um daqueles que o Pai Lhe deu na aliança da redenção, e que, como conseqüência disso, todos eles certamente serão levados a se arrepender, confiar e ser salvos. Não podemos ver o sentido de Cristo derramando desnecessariamente seu sangue ou sofrendo desnecessariamente. Em muitos exemplos, os homens rejeitam a doutrina da expiação limitada porque não compreendem o que é; num número menor de casos, os homens a rejeitam porque eles não estão dispostos a admitir que Deus tem o direito soberano de fazer com Suas criaturas conforme quiser, e salvar quem quiser.

Quando se considera essa questão do ponto de vida de sua posição como propiciação, a expiação tem de ser limitada aos crentes, pois se Deus se reconciliou com todos os homens sem exceção, então não pode haver razão para eles irem para o inferno, pois Sua ira para com eles foi apaziguada, que é o significado da palavra “propiciação”. Veja também o Capítulo Treze, Ponto II, sobre a extensão da salvação. A mesma coisa é verdade se a consideramos a partir do aspecto da expiação em sua posição de reconciliação. Se há ainda algum pecado cobrado de algum homem, ele não experimentou a expiação, que tira todo o pecado, e ele está ainda perdido e a caminho do inferno. Se uma expiação foi feita para ele pessoalmente, então Deus se apaziguou e ele se reconciliou com Deus, ou pelo menos estará nessa condição em algum momento de sua vida. Não há alternativa para esses dois fatos; para ser coerente, temos de escolher uma ou outra dessas alternativas.

SEÇÃO 2

A EXPIAÇÃO PROPOSTA

Tendo considerado as premissas básicas envolvidas na definição da expiação, é-nos agora conveniente voltar à eternidade passada e considerar a intenção original da expiação, e ver como a sabedoria divina se revelou na expiação do começo ao fim. Samuel Baird bem disse que:

Seria tolice ou loucura extrema um indivíduo gastar suor e dinheiro na construção de uma vasta e complicada obra mecânica sem ter estabelecido antecipadamente a função específica que essa obra deverá realizar. Poderia se fazer a mesma cobrança de uma situação em que alguém tivesse um propósito em vista e procedesse, sem considerar cuidadosamente como adaptar seus meios para a finalidade proposta; ou se ele fizesse um plano conveniente e o colocasse nas mãos de um superintendente, enquanto operários individuais tivessem permissão de agir de modo independente desse plano, e usar tais materiais e obra para tal modelo conforme achassem melhor ou gostassem… Esses princípios se aplicam às obras de Deus, bem como às obras dos homens. — The Elohim Revealed (A Revelação de Elohim), p. 82. Lindsay and Blakiston, Philadel¬phia, 1860.

Contudo, essa perspectiva do programa divino para a redenção do homem pecador está tão longe dos planos que a mente rebelde do homem auto-suficiente faz que a maioria das pessoas nestes dias maus em que vivemos hoje veio a ignorar completamente, de modo que é bem raro ouvirmos uma pregação sobre o assunto do propósito e preparação divina da expiação. De modo oposto, em todo o mundo os púlpitos estão cheios de homens que aos domingos falam das responsabilidades do homem, e de sua capacidade de cumpri-las, mas raramente alguém faz a importante pergunta: “E para estas coisas quem é idôneo?” (2 Coríntios 2:16). Pois se por apenas um momento parássemos para pensar com seriedade nas Escrituras que apresentam a condição caída e totalmente depravada do homem, então seríamos compelidos a dizer com Paulo: “Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus” (2 Coríntios 3:5).

Esse grande assunto da proposta da expiação necessariamente nos conduz de volta à grande sala divina de reuniões na eternidade, e à aliança entre as Pessoas da Divindade em que a aliança da redenção foi concebida e decidida. Esse é um aspecto da expiação interessante e vastamente importante, mas quem já ouviu falar desse assunto pregado ou ensinado nesses dias de infidelidade e apostasia da verdade? A aliança da redenção é a própria base da esperança do homem na salvação da ira futura, e para comunhão com Deus por toda a eternidade sem fim, pois mediante essa aliança, o Deus soberano tem se comprometido e se obrigado a passar certos benefícios maravilhosos para Suas criaturas indignas, conforme está escrito: “A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo, E demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo; Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus, Segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor, No qual temos ousadia e acesso com confiança, pela nossa fé nele” (Efésios 3:8-12).

Pode-se notar as seguintes coisas nesse texto: (1) O processo do raciocínio natural não leva a entender a obra redentiva de Cristo, pois essa obra é um mistério que esteve escondido até que Deus quis revelá-la. Deus vem progressivamente revelando-a em toda a história do homem. (2) É hoje a vontade de Deus que essa obra seja revelada aos poderes angélicos das regiões celestiais mediante a pregação e práticas das igrejas. (3) Esse programa redentivo é uma manifestação da sabedoria de Deus que alcança todas as necessidades humanas. (4) Essas coisas se baseiam no propósito eterno de Deus que foi designado em Cristo antes que o mundo começasse. (5) É só em Cristo assim revelado que temos ousadia e acesso em confiança através dEle em fé. Podemos admirar a obra expiatória de Cristo de longe, mas ninguém realmente pode se beneficiar dessa obra exceto pela fé nEle.

Os propósitos da expiação são muitas vezes mencionados como a aliança de Deus, mas a palavra grega diatheke, da qual a palavra “aliança” é a tradução mais comum, é erroneamente traduzida “testamento” treze das trinta e três vezes em que aparece no Novo Testamento, e assim o significado é de certo modo obscurecido. Os textos seguintes assim mostram o relacionamento entre a aliança e a obra redentiva de Cristo: “Bendito o Senhor Deus de Israel, Porque visitou e remiu o seu povo, E nos levantou uma salvação poderosa Na casa de Davi seu servo. Como falou pela boca dos seus santos profetas, desde o princípio do mundo; Para nos livrar dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam; Para manifestar misericórdia a nossos pais, E lembrar-se da sua santa aliança, E do juramento que jurou a Abraão nosso pai” (Lucas 1:68-73). “Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus fez com nossos pais, dizendo a Abraão: Na tua descendência serão benditas todas as famílias da terra. Ressuscitando Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, no apartar, a cada um de vós, das vossas maldades” (Atos 3:25-26). “E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, E desviará de Jacó as impiedades. E esta será a minha aliança com eles, Quando eu tirar os seus pecados” (Romanos 11:26-27).

Há numerosas outras referências à aliança, e faremos menção de algumas mais tarde neste estudo, mas essas referências são suficientes por enquanto para mostrar que o programa redentivo de Cristo é resultado da aliança de Deus que data desde a eternidade passada. A palavra “aliança” é usada de várias diferentes maneiras, e com diferentes nuanças de sentido, de modo que nosso dever inicial será apurar esses diferentes usos da palavra. John Gill dá o seguinte resumo:

1. Às vezes, é usada para uma lei, preceito e mandamento (Números 18:19; Jeremias 34:13 14; Deuteronômio 4:13). 2. Uma aliança, quando atribuída a Deus, é muitas vezes nada mais do que uma mera promessa (Isaías 59:21; Efésios 2:12). 3. Muitas vezes lemos acerca de alianças de Deus só de um lado (Jeremias 33:20; Gênesis 9:9 17). 4. Uma aliança feita entre um homem e homem é por estipulação e re-estipulação, em que eles fazem promessas mútuas, ou condições, para serem cumpridas por eles (Gênesis 26:28; 1 Samuel 20:15 16, 42; 23:18). 5. Não se pode fazer tal aliança, falando devidamente, entre Deus e o homem; pois o que é que o homem pode re-estipular diante de Deus, o que está no poder dele fazer ou lhe dar, e as coisas em que Deus não tem direito prévio? 6. A aliança da graça feita entre Deus e Cristo, e com os eleitos nele, como Cabeça e Representante deles, é uma aliança adequada, consistindo de estipulação e re-estipulação; Deus o Pai nessa aliança estipula com Seu Filho, que ele fará tal e tal obra e serviço, com a condição de que ele promete conferir tais e tais honras e benefícios a ele, e aos eleitos nele; e Cristo o Filho de Deus re-estipula e concorda em fazer tudo o que é proposto e prescrito, e com a realização, espera e reivindica o cumprimento das promessas; nessa aliança há engajamento mútuo no qual cada parte entra, sobre a qual estipulam e re-estipulam, que tornam uma devida aliança formal (Isaías 49:1 6; 53:10 12; Salmo 40:6 8; João 17:4 5). — Condensado de Body of Divinity (Corpo de Divindade), Book II, Capítulo VII, pp. 215 216. Turner Lassetter, Atlanta, 1950.

Os homens desejam encontrar várias alianças nas Escrituras, mas na verdade, Deus considera apenas duas delas — a aliança das obras e a aliança da graça, e Sara, Agar e seus filhos tipificavam essas duas alianças. “Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava, e outro da livre. Todavia, o que era da escrava nasceu segundo a carne, mas, o que era da livre, por promessa. O que se entende por alegoria; porque estas são as duas alianças; uma, do monte Sinai, gerando filhos para a servidão, que é Agar. Ora, esta Agar é Sinai, um monte da Arábia, que corresponde à Jerusalém que agora existe, pois é escrava com seus filhos. Mas a Jerusalém que é de cima é livre; a qual é mãe de todos nós” (Gálatas 4:22-26)

Essas duas alianças correspondem a dois planos únicos de salvação que chegaram a ser propostos; um pela graça, e o outro pelas obras; qualquer outro plano que se possa propor será uma mistura desses planos, com um ou o outro predominando nas proporções. Assim, esses dois planos correspondem aos dois Adãos, os cabeças que representam os dois tipos de pessoas.

A aliança entre Deus o Pai, e a segunda pessoa da Trindade, é uma segunda e nova aliança. A primeira aliança foi entre Deus, e o primeiro Adão, como representante de toda a humanidade, ou seja, a cabeça pública deles. Essa aliança entre Deus e o último Adão (o Redentor dos homens, a segunda cabeça pública) é uma segunda e nova aliança. E essa coloca o alicerce da aliança entre Deus e o homem, da qual estamos agora falando, e realmente a sugere, como vimos observando.

Mas essa aliança, entre Deus o Redentor, e aqueles que crêem nele, é chamada expressamente de uma nova aliança, como é uma aliança de graça, e nisso distinta da aliança das obras, sob a qual toda a humanidade estava, antecedendo a redenção que Cristo realizou: essa aliança foi revelada e mantida em vista em grande parte debaixo da dispensação de Moisés. — Samuel Hopkins, The System of Doctrines (O Sistema de Doutrinas), Vol. II, p. 100. Isaiah Thomas and Ebenezer T. Andrews, Boston, 1793.

No momento, nosso principal interesse será considerar essa aliança da graça que existe desde que o tempo começou, e notar quais são suas propriedades, e com que e com quem tem a ver.

I. O PROPÓSITO DA EXPIAÇÃO.

“Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes dos vossos pais, Mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós; E por ele credes em Deus, que o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus” (1 Pedro 1:18-21) “…o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Apocalipse 13:8). “…embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo” (Hebreus 4:3). “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” (Romanos 8:29-30). “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade” (2 Tessalonicenses 2:13). “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1 Pedro 1:2)

Esses textos, e outros de importância semelhante, enfatizam o fato de que a obra redentiva de Cristo foi concluía na mente de Deus desde a fundação do mundo, e assim é evidente que Deus tinha o propósito de redimir o homem caído desde que o homem começou sua existência. E. G. Robinson diz acerca disso:

A morte de Cristo em expiação pelo pecado se fez necessária ao ter sido incluída no plano original da criação. A queda do homem e a conseqüente pecaminosidade da raça eram tão distintas para a mente divina antes da criação do homem quanto eram depois. Portanto, temos de concluir que Deus criou conscientemente o homem para um destino de pecado e ruína sem esperança, ou que na mente de Deus a morte expiatória e mediatário de Cristo estava desde a eternidade como um pensamento central e provisão essencial no propósito eterno da própria criação. Daí as declarações apostólicas de uma eleição dos redimidos “antes da fundação do mundo” (Efésios 1:4; 1 Pedro 1:20; Apocalipse 13:8). — Christian Theology (Teologia Cristã), pp. 289 290. Press of E. R. Andrews, Rochester, 1894.

A própria menção das palavras “conhecido antes”, “dantes conhecido”, “predestinar”, “elegido desde o princípio” e “eleitos” todas salientam a intenção e o preparo de um plano redentivo para o homem que antecede à criação do homem, e assim, conseqüentemente, sem relação com o caráter ou obras do homem. A negligência de levar em consideração essa intenção e planejamento da expiação antes do tempo já levou a muitos erros, pois um número grande de teólogos supõe que a expiação foi algum plano emergencial inventado depois do fato da queda do homem para satisfazer as exigências do pecado. Mas toda a Criação, Providência e Redenção eram partes do plano original de Deus para revelar Sua graça e bondade e glorificar a Si mesmo. A Criação foi o preparo de um lugar para revelar Sua glória, e a preparação de um povo para glorificá-Lo; a providência foi a operação de todos os detalhes de modo que todas as coisas cooperassem para essa finalidade; e o plano da redenção foi a exibição real no palco do mundo, da graça e bondade de Deu que Lhe deram o direito ao louvor, honra e glória de todos os seres criados.

Não recebemos muitas informações acerca do que aconteceu nos conselhos divinos na eternidade passada quando o propósito da expiação estava sendo decidido, mas referência ao “sangue da aliança eterna” (Hebreus 13:20), torna evidente que a aliança da redenção antedata a todo o tempo. Contudo, se isso é verdade, então nada tem a ver com o homem, e torna óbvio que o homem não foi uma das partes que fez a aliança original. Portanto, ele não teve parte alguma no momento de determinar os termos da aliança. Em outras palavras, essa aliança era horizontal — entre a Trindade de Deus — e não vertical — entre Deus e o homem. John Gill define uma aliança de Deus assim:

Uma aliança, quando atribuída a Deus, é muitas vezes nada mais do que uma mera promessa (Isaías 59:21). Daí lemos de alianças da promessa, ou alianças promissórias (Efésios 2:12), e, aliás, a aliança da graça, com respeito aos eleitos, nada mais é do que uma promessa gratuita de vida eterna e salvação mediante Jesus Cristo, a qual inclui todas as outras promessas de bênçãos de graça consigo: “E esta é a promessa que ele nos fez [a grandiosa promessa abrangente]: a vida eterna” (1 João 2:25), e que é absoluta e incondicional, com respeito a eles; quaisquer que sejam as condições que essa aliança tenha, cabe só a Cristo a realização; ele e sua obra são suas únicas condições. — Body of Divinity (Corpo da Divindade), Livro III Capítulo VII, p. 215. Turner Lassetter, Atlanta, 1950.

Sabemos do conselho da Trindade na eternidade passada principalmente a partir de algumas indicações casuais desse conselho e a partir dos resultados desse conselho, a aliança eterna de graça e a obra redentiva que resultam dele. Se for verdade que “Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras” (Atos 15:18), então parece igualmente certo que tem de haver um plano específico planejado desde o início ao qual todas as coisas tinham de ser colocadas em harmonia. Que tal fato é verdade em todas as esferas da Criação, Providência e Redenção é certo a partir do contexto em que o Salmo 33:9 11 aparece e ao qual se refere quando diz: “Porque falou, e foi feito; mandou, e logo apareceu. O SENHOR desfaz o conselho dos gentios, quebranta os intentos dos povos. O conselho do SENHOR permanece para sempre; os intentos do seu coração de geração em geração” (Salmos 33:9-11)

Mas o que é mais importante na questão da expiação são as referências seguintes: “Eu, o SENHOR, te chamei em justiça, e te tomarei pela mão, e te guardarei, e te darei por aliança do povo, e para luz dos gentios” (Isaías 42:6). “Assim diz o SENHOR: No tempo aceitável te ouvi e no dia da salvação te ajudei, e te guardarei, e te darei por aliança do povo, para restaurares a terra, e dar-lhes em herança as herdades assoladas” (Isaías 49:8). Cristo é aí chamado de aliança do povo porque Ele é o “mensageiro da aliança” (Malaquias 3:1), e é sobre Ele que estão firmadas as condições para cumprir a aliança da redenção. Deve-se admitir que Cristo não realizou mais do que foi proposto que Ele realizaria no programa redentivo de modo que o que foi registrado de Seus atos na expiação tem de ser sustentado como o que foi proposto, conforme diz John Gill:

Como o resumo do evangelho, que nada mais é do que um transcrito da aliança da graça, é a salvação de pecadores perdidos mediante Cristo; assim a aliança, da qual o evangelho é cópia, tem a ver principalmente com o evangelho, e o evangelho é o resultado dessa aliança: daí Cristo, o Realizador da aliança, tem o nome de Jesus, porque ele empreendeu salvar, e veio para salvar, e salvou seu povo de seus pecados, em conseqüência dos compromissos de sua aliança. — Body of Divin¬ity (Corpo da Divindade), Livro III Capítulo VIII, p. 219. Turner Lassetter, Atlanta, 1950.

A. W. Pink também comenta acerca do propósito de Deus na aliança eterna:

Uma aliança é um acordo mútuo entre duas partes em que se propõe certo trabalho e se promete em troca uma recompensa adequada. Na aliança eterna as duas partes eram o Pai e o Filho. A tarefa designada ao Filho era que Ele deveria se encarnar, prestar à lei uma obediência perfeita em seus pensamentos, palavras e ações, e então sofrer sua pena em favor de Seu povo culpado, com isso oferecendo ao Deus ofendido (considerado como Governador e Juiz) uma expiação adequada, satisfazendo Sua justiça, engrandecendo Sua santidade e introduzindo uma justiça eterna. A recompensa prometida era que Deus ressuscitaria dos mortos o Fiador e Pastor de Seu povo, exaltando-O à Sua direita bem acima de todas as criaturas, conformando-os à imagem de Seu Filho, e tendo-os consigo na glória para todo o sempre. — Gleanings From Paul (Coletâneas de Paulo), pp. 43 44. Moody Press, Chicago, 1967.

Sendo pois a aliança da graça o propósito de Deus de cumprir uma redenção do pecado para o homem caído, cabe-nos em seguida notar:

II. A PROMESSA DA EXPIAÇÃO.

Adão foi o primeiro pecador, mas ele pecou também na posição como representante. Portanto, foi inteiramente natural que a primeira promessa da expiação lhe fosse dada. Por isso, está escrito que o Senhor disse à serpente na presença de Adão e Eva: “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gênesis 3:15). Entretanto, não só foi dada essa promessa, que incorporava a expiação, mas também a expiação era de forma descritiva representada diante dos olhos de Adão e Eva quando “fez o SENHOR Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu” (Gênesis 3:21). Aí se descreve a expiação de modo belo em que: (1) A nudez representa o estado espiritual do pecador diante de Deus — desprovido de qualquer cobertura de justiça, e incapaz de prover tal cobertura para seus pecados. (2) Deus cuidou desse assunto todo; o homem nada fez para remediar sua situação. (3) Essas vestes de pele exigiam a morte de animais e o derramamento de seu sangue a fim de cobrir esse casal culpado, e tudo isso prefigura a crucificação do imaculado Cristo para que pudéssemos ser purificados de nossos pecados, e para que Sua justiça fosse imputada ao homem culpado, de modo que ele possa ficar na presença de Deus, plenamente aceito. Que Adão e Eva entendiam o aspecto espiritual disso parece certo quando percebemos que Abel tinha consciência da necessidade de um cordeiro morto para um sacrifício expiatório, e ele só podia ter essa consciência como resultado dos ensinos de seus pais ou de uma revelação direta de Deus, o que é menos provável. Ele não poderia ter tido a fé, que Hebreus 11:4 elogia nele, sem entender o sentido desse sacrifício.

Quando lemos acerca de Abraão, vemos a repetição da promessa, mas dessa vez se declara que o evangelho é as boas novas da expiação: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar pela fé os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão, dizendo: Todas as nações serão benditas em ti” (Gálatas 3:8). É verdade que aí de novo não vemos a expiação definida como hoje a entendemos; mas é óbvio que Abraão entendia que havia muito mais envolvido aí do que o mero nascimento de Isaque, caso contrário Abraão não poderia ser usado como um protótipo e exemplo dos crentes, como é o caso em Gálatas 3:6 9. Abraão deve ter entendido essa profecia como se referindo à vinda do Messias, pois, a partir de sua época, aparece mais e mais uma expectação da vinda do Messias.

A menção clara mais antiga acerca do Messias se encontra na oração de Ana em que ela diz: “Os que contendem com o SENHOR serão quebrantados, desde os céus trovejará sobre eles; o SENHOR julgará as extremidades da terra; e dará força ao seu rei, e exaltará o poder do seu ungido” (1 Samuel 2:10). A palavra salientada aí é o significado de ambos os termos “Messias” e “Cristo”, e embora não insistamos em que Ana nem qualquer um dos outros santos do Antigo Testamento tivessem tão clara perspectiva da obra expiatória de Cristo como hoje temos, porém é evidente que eles associavam a vinda do “Ungido” à salvação (1 Samuel 2:1).

Um número muito grande de pessoas presume que os profetas do Antigo Testamento profetizavam só acerca de problemas locais, políticos e sociais, mas lemos que o ministério deles lidava com a vinda de Cristo e Sua obra redentiva: “A este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele crêem receberão o perdão dos pecados pelo seu nome” (Atos 10:43). “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos do refrigério pela presença do Senhor, E envie ele a Jesus Cristo, que já dantes vos foi pregado. O qual convém que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio” (Atos 3:19-21). “Sim, e todos os profetas, desde Samuel, todos quantos depois falaram, também predisseram estes dias” (Atos 3:24)

Todos esses textos nos deixam pouco espaço para questionar que Deus havia revelado a Israel que Ele tinha proposto um sacrifício expiatório pelos pecados dos homens, mas, ao mesmo tempo, temos a revelação de que geralmente as pessoas não entendiam e criam nessa promessa, pois só uns poucos raros realmente estavam esperando e aguardando o Salvador quando Ele nasceu. Um deles foi Simeão: “Havia em Jerusalém um homem cujo nome era Simeão; e este homem era justo e temente a Deus, esperando a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele. E fora-lhe revelado, pelo Espírito Santo, que ele não morreria antes de ter visto o Cristo do Senhor” (Lucas 2:25-26). Há também Ana, sobre quem está escrito: “E sobrevindo na mesma hora, ela dava graças a Deus, e falava dele a todos os que esperavam a redenção em Jerusalém” (Lucas 2:38)

A declaração inspirada de Pedro é que os profetas do passado “inquiriram e trataram diligentemente [os quais] profetizaram da graça que vos foi dada, Indagando que tempo ou que ocasião de tempo o Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a glória que se lhes havia de seguir” (1 Pedro 1:10-11). Bem disse Samuel Baird:

Contudo, quaisquer sombras que estivessem na mente deles, quaisquer mistérios que permanecessem escondidos do entendimento deles, o assunto inteiro hoje permanece revelado a nós, na luz mais clara do cumprimento, e das interpretações inspiradas que o Novo Testamento supre para as revelações do Antigo Testamento. Deus assim nos permite contemplar uma cena e, observando-a, somos chamados a tirar nossos calçados, em temor e reverência de adoração. O lugar em que estamos é santo. É a sala da presença de Deus, a sala do conselho da bendita Trindade. — The Elohim Revealed (A Revelação de Elohim), p. 553. Lindsay and Blakiston, Philadelphia, 1860.

É difícil entendermos como as pessoas do passado não conseguiam compreender tais declarações gloriosamente claras como essas que se encontram em Isaías 53:4-6: “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”. No entanto, estamos no lado realizado dessa mensagem, e o efetuar sempre torna mais fácil entender qualquer coisa. Sem dúvida havia alguns na época do Antigo Testamento que de fato tinham discernimento para entender o significado dessas profecias, e provavelmente eles eram mais numerosos do que aqueles que compreendem corretamente algumas das profecias não cumpridas nos capítulos 40 48 de Ezequiel. Portanto, bem fazemos em não criticá-los até que saibamos como está nosso discernimento espiritual quando estivermos diante do Senhor.

Os fatos são evidentes de que Deus propôs na eternidade passada realizar uma expiação para suas criaturas caídas e pecadoras, e que Ele deu uma revelação (que estava em constante expansão) acerca desse fato para Suas criaturas, de modo que na época do nascimento de Cristo, o fato de que Alguém especial estava para nascer no mundo era conhecido até mesmo na Pérsia, de modo que homens sábios vieram do Oriente para procurá-Lo. Esses fatos nos conduzem a considerar ainda outra faceta importante dessa questão, que é:

III. A EXPIAÇÃO E A PROVIDÊNCIA.

Todas as doutrinas são inter-relacionadas, mas há um relacionamento de modo especial íntimo entre essas duas doutrinas, pois não basta que Deus tenha como propósito efetuar a expiação; Ele tem também de fazer todas as coisas cooperarem de modo que a expiação se cumpra. Se Deus tivesse apenas tencionado e prometido a expiação, mas não tivesse trabalhado de modo eficaz para cumpri-la, a malícia de Satanás e a depravação da humanidade caída teriam operado sua derrota no próprio início da história da raça humana. O que Deus tenciona fazer em Seu “determinado conselho”, Ele cumpre; isso descreve a providência.

O plano que foi formado nos conselhos da eternidade se realizou no tempo, pela administração do governo providencial. Esse governo é conduzido por dois meios; em parte por meio das leis naturais e causas secundárias, e em parte por meio da intervenção direta de Deus. — Samuel Baird, The Elohim Revealed (A Revelação de Elohim), p. 100. Lindsay and Blakiston, Philadelphia, 1860.

Durante os séculos houve muitas tentativas de frustrar os propósitos redentivos de Deus e destituir a expiação, pois a partir do momento que Deus prometeu que a semente da mulher um dia feriria a cabeça da semente da serpente, o diabo começou a olhar com desconfiança para todos os homens que vieram a nascer no mundo. Talvez Eva achasse que essa promessa se cumpriu quando Caim nasceu, pois alguns traduzem Gênesis 4:1 assim: “Tive um homem, o próprio Jeová”. Contudo, à medida que Caim cresceu e se desenvolveu, ficou cada vez mais óbvio que ele não era o homem que o Senhor havia escolhido para redimir os homens; mas Abel, quando cresceu, começou a manifestar mais e mais piedade e amor a Deus, e assim Satanás moveu Caim a assassiná-lo. Mas esse assassinato não frustrou o programa redentivo de Deus, porém apenas revelou mais a malignidade de Satanás.

Na época de Abraão, quando a promessa do evangelho foi renovada, Satanás de novo se esforçou para frustrar a expiação substituindo uma de suas próprias no lugar da semente prometida, e assim Abraão e Sara, em sua indisposição de aguardar o Senhor cumprir a promessa, agiram por conta própria e o resultado foi que nasceu Ismael. Quantas vezes pessoas bem-intencionadas repetem esse mesmo erro em sua tentativa de salvar um amado antes que o Senhor tenha começado a operar eficazmente no indivíduo. Paulo diz que Sara e Agar e seus respectivos filhos são uma alegoria que ensina como é fácil gerar semente humana em vez de semente da espécie prometida. Num excelente estudo acerca desse assunto, J. B. Moody diz:

Agora perceba: Deus só permitiu que Sara concebesse depois que evidente que os meios naturais eram totalmente insuficientes. A lição é esta: a fraqueza dos meios humanos tem de ser suplementada com o poder dos meios divinos, de modo que a Aliança da Graça não pode produzir, exceto no mesmo modo. Nenhuma quantidade de manipulações, maquinário, métodos e meios humanos podem produzir Isaques, mas muitíssimos Ismaels. Observe de novo que Sara era a mais velha e a única esposa real, e que Agar era uma substituta planejada pelo coração humano. Foi uma tentativa de ajudar o Todo-poderoso a sair de Sua aparente conflito. Sempre foi assim. Os propagadores humanos da “semente da promessa” se cansam de esperar a lenta Aliança da Graça, e recorrem à Aliança das Obras da fecunda Agar, que dá fruto com facilidade de sua própria espécie. — The Exceeding Riches of the Manifold Grace of God (As Riquezas Excedentes da Multiforme Graça de Deus), pp. 135-¬136. Hall Moody Institute, Martin, Tennessee, no date.

As relações providenciais de Deus mantiveram a salvo o plano de redenção, e no devido tempo Isaque nasceu, e mediante ele Jacó, os doze filhos e por fim a nação de Israel. Mas Satanás não tinha terminado, e tentou de novo corromper o meio da expiação. Ele tentou destruir a nação de Israel durante sua escravidão no Egito, colocando na mente de faraó a idéia de que todas as crianças hebréias do sexo masculino fossem mortas logo que nascessem. Talvez ele achasse que o Redentor prometido estava para nascer naquela época. Mediante as relações providenciais de Deus, frustrou-se também esse ataque, assim como também foram frustradas as tentativas de corromper totalmente Israel mediante adoração falsa durante o tempo dos reis de Israel e de Judá. A mesma coisa é verdade acerca do cativeiro dos judeus na Babilônia. Todos esses acontecimentos foram tentativas de Satanás de perverter, corromper e destruir de tal maneira o canal mediante o qual viria Aquele que feriria a cabeça da semente da serpente, e com isso frustraria o plano de Deus para a redenção do homem, pois a expiação dos pecados dos homens está intimamente ligada à destruição do poder de Satanás, conforme revela Hebreus 2:14.

À medida que se aproximava o tempo do cumprimento da promessa de Deus, vemos a providência de Deus operando de duas maneiras: primeira, foi pela providência do Senhor que o capricho de um governante romano enviou José e Maria ao lugar em que o Messias deveria nascer (Lucas 2:1 7). E segunda, foi pela providência protetora do Senhor que quando Herodes, por ciúmes por seu trono, ordenou que todos os bebês na região de Belém fossem mortos, ele não teve condições de realizar seu intento, porque o bebê Jesus já havia sido levado em segurança para o Egito (Mateus 2:13 23).

Satanás se esforçou para desviar Jesus da cruz numa última tentativa de frustrar a obra redentiva de Cristo tentando-O para buscar as coisas boas e certas do jeito errado e pelos motivos errados (Mateus 4:10-11). Naturalmente, essas tentações fracassaram, e Jesus acabou cumprindo o plano redentivo exatamente do jeito que foi ordenado desde o começo. Todos esses acontecimentos estão diante de nós, para admirarmos e louvarmos a Deus, já que somos participantes dos benditos frutos disso. Bem declarou Samuel Baird que:

Propondo tais finalidades como temos assim mostrado, Deus no começo formou um plano perfeito para a realização de seu propósito; um plano, perfeito em que se adapta com precisão à finalidade para a qual foi proposta; e perfeito na totalidade e adaptação de todos os mínimos detalhes para seu ofício especial, e na inteira simetria e harmonia do todo. — The Elohim Revealed (A Revelação de Elohim), p. 86. Lindsay and Blakiston, Philadel¬phia, 1860.

Samuel Hopkins também fala acerca da perfeição do plano da redenção e de sua adaptação maravilhosa quando diz:

A Aliança da Graça, quando a compreendemos no sentido mais extenso, abrange todos os desígnios e transações com respeito à redenção do homem mediante Jesus Cristo, em oposição à aliança das obras, ou lei de obras, sob a qual o homem foi criado primeiro; e o mesmo se aplica ao evangelho, quando o consideramos em sua origem, e a forma em que é administrado, e seus efeitos. — Nessa perspectiva, a Aliança da Graça abrange o propósito eterno de Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para redimir o homem, determinando seu modo, e tudo o que tem relação com esse propósito, e entrando num acordo ou aliança mútua; na qual a participação de cada Pessoa, em distinção das outras, foi decretada e realizada voluntariamente. — System of Doctrines (Sistema de Doutrinas), Vol. II, p. 95. Isaiah Thomas and Ebenezer T. And¬rews, Boston, 1793.

“Tudo o que o SENHOR quis, fez, nos céus e na terra, nos mares e em todos os abismos” (Salmos 135:6). Como temos de ser gratos que Ele se agradou e propus a realizar uma redenção do pecado para o homem mau e inútil, e que fomos feitos pela graça participantes desse plano remidor. “De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deus” (2 Coríntios 5:20)

SEÇÃO 3

A EXPIAÇÃO PREFIGURADA

“Estava entre nossos pais no deserto o tabernáculo do testemunho, como ordenara aquele que disse a Moisés que o fizesse segundo o modelo (grego: tupos = tipo) que tinha visto” (Atos 7:44). “Os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais, como Moisés divinamente foi avisado, estando já para acabar o tabernáculo; porque foi dito: Olha, faze tudo conforme o modelo (grego: tupos = tipo) que no monte se te mostrou” (Hebreus 8:5).

Esses dois textos salientam o fato de que o tabernáculo era um tipo das coisas celestiais, que foram reveladas a Moisés para que ele as copiasse. A importância desses tipos está implícita em que durante a construção do tabernáculo Moisés era constantemente admoestado a restringir-se completamente ao modelo. Apenas em Êxodo capítulos 39 e 40 faz-se referência dezesseis vezes a eles fazendo coisas “como o Senhor tinha ordenado a Moisés”, ou uma declaração equivalente. A razão para essa precisão quanto ao modo como cada coisa era feita e usada não é difícil de discernir, pois o livro de Hebreus exibe o fato de que o Tabernáculo e seus sacrifícios, cultos e dias santos eram prefigurações do Messias e Sua obra redentiva: “Dando nisto a entender o Espírito Santo que ainda o caminho do santuário não estava descoberto enquanto se conservava em pé o primeiro tabernáculo, Que é uma alegoria para o tempo presente, em que se oferecem dons e sacrifícios que, quanto à consciência, não podem aperfeiçoar aquele que faz o serviço; Consistindo somente em comidas, e bebidas, e várias abluções e justificações da carne, impostas até ao tempo da correção. Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação” (Hebreus 9:8-11).

As pessoas que viviam na época do Antigo Testamento não ouviam pregações claras sobre o plano da redenção, mas desde seu cumprimento, a pregação tem sido clara. Contudo, a eles foi dado o plano redentor através de representações nítidas no tabernáculo e no templo, e enquanto havia muitos que viam nos rituais nada mais do que forma externa, do mesmo modo como muitos hoje nada vêem na adoração a não ser sua forma exterior, porém há pouca dúvida de que muitos tinham um discernimento espiritual por meio do qual eles entendiam a importância espiritual dessas coisas. Afinal, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento declaram que ninguém entende as coisas espirituais mediante seus capacidades intelectuais, mas apenas conforme o Senhor lhe revela (Deuteronômio 29:4; Isaías 29:10; Romanos 11:7?10; 1 Coríntios 2:12?14). Assim tudo depende, não na base da capacidade intelectual do homem, mas em vez disso nas revelações de Deus e no discernimento que Ele dá ao homem.

Em vista do fato de que a revelação que Deus deu de Si mesmo é uma revelação progressiva, é inteiramente natural supor que as revelações mais antigas seriam mais simples e mais visíveis do que as revelações mais complexas que vieram mais tarde. É a esse fato que nos referimos ao falar da prefiguração da expiação; a verdade da redenção foi representada de forma pictórica aos homens nos rituais e sacrifícios do tabernáculo. J. R. Graves diz acerca da Dispensação Judaica:

Não era um sistema de Ritualismo, embora impusesse muitos ritos, sacrifícios e cerimonialismo. Em parte alguma ensinava que se poderia obter a salvação dos pecados mediante a obediência a esses ritos, ou que se deveria obter a remissão ou circuncisão espiritual em conexão com esses ritos; mas que eles eram apenas tipos e figuras que apontavam para Cristo, e das quais Cristo era a essência. No começo a nação inteira dos judeus entendia claramente isso, e todos os que eram justificados eram justificados pela mesma fé que Abraão tinha. Eles aguardavam, com a ajuda dos tipos, Cristo como o Grande Arquétipo, exatamente como olhamos (vendo em todo o passado através das ordenanças da igreja cristã) para Cristo como a essência, e, crendo, somos justificados. — The Seven Dispensations (As Sete Dispensações), p. 219. Bap­tist Sunday School Committee, Texarkana, 1928.

Esses sacrifícios e serviços típicos deixaram de existir hoje, pois todos se cumpriram na morte sacrificial de Cristo. Esses sacrifícios e serviços eram “sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo” (Colossenses 2:17). Portanto, não se aplicam aos crentes de hoje, exceto no sentido de que podemos vê-los prefigurando a expiação de Cristo. Até certo ponto, eles também, como Abraão, ouviram de antemão a pregação do evangelho, e muitos deles tinham a mesma fé salvadora que ele tinha. Consideraremos essa prefiguração da expiação a partir de três pontos de vista.

I. A EXPIAÇÃO PREFIGURADA NOS SACRIFÍCIOS.

Quase desde a abertura do livro de Gênesis vemos um sistema de sacrifícios que os homens ofereciam a Deus a fim de aplacar a ira dEle por seus pecados, e até hoje em terras em que a religião cristã não tem grande influência há ainda o costume de se oferecer sacrifícios aos deuses locais. É natural à própria natureza do homem a disposição de adorar algo, e embora a queda tenha pervertido a adoração pelo homem, ele ainda sente a necessidade de algum tipo de sacrifício expiatório. Os primeiros sacrifícios que o homem fez dos quais temos registro são quando Caim e Abel trouxeram seus sacrifícios ao Senhor (Gênesis 4), mas o ato de imolar animais a fim de se fazer vestes de pele para Adão e Eva em Gênesis 3:21 era, como dissemos antes, um ensino da expiação de sangue. Essa foi, assim cremos, a fonte de conhecimento que, em grande parte, Caim e Abel tinham acerca da adoração; eles haviam aprendido com seus pais a adorar a Deus por meio de um sacrifício sanguinoso, mas Caim, como tantas pessoas hoje, não queria confessar que precisava de um sacrifício expiatório, e assim trouxe uma oferta de gratidão das obras de suas próprias mãos. A instituição original do sistema sacrificial era de Deus, e tinha como objetivo servir de símbolo até que se cumprisse em Cristo.

Presumo que o rito sacrificial foi ordenado por Deus logo após a queda do homem. Lemos que Abel ofereceu a Deus um sacrifício mais excelente do que Caim. Ele colocou no altar um dos primogênitos de seu rebanho. Ele se aproximou de Deus por meio de sangue. Abraão ofereceu sacrifícios, e Jó fez a mesma coisa. No monte Sinai, houve um aumento do sistema sacrificial. Muitas adições lhe foram acrescentadas, e fez-se provisão para maior regularidade e solenidade em suas ofertas. Agora, todos os sacrifícios das eras patriarcais e judaicas prefiguravam o único Sacrifício na cruz. Todo altar enviava seu sangue e fumaça na direção do Calvário. As muitas vítimas apontavam para uma única vítima. Os muitos sacrifícios chamavam a atenção para o único sacrifício a ser oferecido “na consumação dos séculos” (Hebreus 9:26). Os rios de sangue animal tipificavam o sangue do Emanuel. Deve ter havido essa referência antecipatória da morte expiatória de Cristo, pois caso contrário todos os regulamentos sacrificiais teriam sido sem significado. Nessa referência aos sacrifícios houve uma significância nítida. A Epístola aos Hebreus prova suficientemente desse ponto de vista do assunto. — J. M. Pendleton, Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 238. American Baptist Publication Society. Philadelphia, 1878.

Conforme foi declarado na citação acima, o sistema sacrificial era mais simplificado antes da entrega da lei de Moisés, após o que o sistema foi ampliado e se tornou mais detalhado. Havia cinco grandes ofertas ordenadas sob a administração mosaica, e Levítico capítulo de 1 a 5 descreve com detalhes essas ofertas. As cinco eram a oferta queimada, a oferta de alimentos, a oferta do sacrifício pacífico, a oferta da expiação do pecado e a oferta da expiação da culpa. Se perguntassem o motivo por que havia necessidade de mais de uma oferta sacrificial, cremos que a resposta está em duas coisas: as necessidades do homem são múltiplas porque o pecado operou imenso mal. E segundo, várias ofertas são necessárias para que tipifiquem de modo adequado tudo o que Cristo realizou com Sua obra expiatória.

Todas as ofertas não eram de uma espécie. Algumas delas tinham a intenção de expressar, como suas idéias principais, a entrega perfeita da alma a Deus; outras tinham como intenção expressar a feliz comunhão com Deus e sinceras ações de graça. Mas havia uma categoria de sacrifício — uma categoria separada em dois grupos — que tinha como objetivo específico fazer expiação por certos tipos de crimes contra a lei de Moisés. O infrator trazia seu sacrifício ao sacerdote, e a oferta do sacrifício garantia o perdão. — R. W. Dale, The Atonement (A Expiação), pp. 84?85. Congregational Union of Eng­land and Wales, London, 1896.

I. M. Haldeman resume o que descreve cada uma dessas ofertas:

Na oferta queimada temos Cristo se entregando para Deus como sacrifício de cheiro suave: “Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Efésios 5:2).

Na oferta da expiação do pecado temos Cristo se entregando por nós. “O qual se deu a si mesmo por nós” (Tito 2:14). “O qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2:20).

Na oferta do sacrifício pacífico temos Cristo nos reconciliando e nos trazendo a Deus. “A vós também, que noutro tempo éreis estranhos, e inimigos no entendimento pelas vossas obras más, agora contudo vos reconciliou No corpo da sua carne, pela morte, para perante ele vos apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis” (Colossenses 1:21-22).

Na oferta da expiação da culpa temos Cristo fazendo provisão em Sua morte por nossos fracassos quando Ele recebe nossas confissões, trazendo-nos absolvição, completo perdão e purificação. “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça” (1 João 1:9).

A oferta de alimentos era a oferta sem sangue. Apresenta a nós todos os símbolos da pessoa e caráter de nosso Senhor Jesus Cristo. Era composta de farinha fina. Era farinha que havia sido moída de modo completo, sem nenhuma pelota. Não havia nenhuma irregularidade nessa farinha. Mostra a humanidade perfeita e equilibrada do Senhor. — Tabernacle, Priesthood and Offerings (Tabernáculo, Sacerdócio e Ofertas), pp. 322?323, 324. Fleming H. Revell Company, New York, 1925.

A oferta queimada poderia ser qualquer um de vários animais, ou até mesmo de pombos, de modo que ninguém era impedido de ofertar por causa de pobreza, mas a oferta tinha de ser feita de certa maneira para que a representação não fosse distorcida. Conforme mostra Levítico 1:3?4, a oferta tinha de ser sem mancha, tinha de ser oferecida voluntariamente, tinha de ser oferecida à entrada do tabernáculo e o ofertante tinha de colocar a mão na cabeça da oferta para mostrar sua ligação com ela. No caso de ofertas menores, como ovelhas ou pombas, esses requisitos diferiam. Contudo, cada uma delas se chama “oferta queimada, de cheiro suave ao SENHOR” (Levítico 1:9,13,17). Como tal, descrevia a devoção absoluta de Cristo à vontade de Seu Pai. “…Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Efésios 5:2). Esse versículo revela que essa oferta se cumpriu na obra redentiva de Cristo. Sua devoção à vontade do Pai é revelada em vários lugares. “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou” (João 4:34). “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mateus 26:39). “Então disse: Eis aqui venho (No princípio do livro está escrito de mim), Para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hebreus 10:7). A expiação não só foi decidida e decretada por Deus o Pai, mas também foi a missão voluntária do Filho por causa de Sua grande devoção a Seu Pai.

A oferta de alimento era a oferta de farinha assada num dos vários modos, mas na medida em que era sem sangue, não tem relação direta com a expiação. Contudo, conforme declara a citação acima do Dr. Haldeman, apresenta a humanidade sem pecado de Jesus, e essa foi uma base necessária para Sua expiação vicária, pois nenhuma pessoa pecadora poderia ter morrido vicariamente na cruz.

A oferta de alimento… apresenta, de um modo bem distinto, “o Homem Cristo Jesus”. Como a oferta queimada tipifica Cristo na morte, a oferta de alimento O tipifica na vida. Em nenhum dos dois casos há a questão de se levar pecados… Mas na oferta de alimentos, não há nem mesmo a questão de derramamento de sangue. Vemos simplesmente, nessa situação, um lindo tipo de Cristo conforme Ele viveu, andou e serviu aqui na terra. — C. H. MacIntosh, Notes On Leviticus (Notas acerca de Levítico), p. 48. Fleming H. Revell, Chicago, 1877.

Jesus muitas vezes se referia a Si como o “pão da vida” (João 6:27,32?33,35,48?58), e por outras declarações semelhantes. O fato de que a oferta de alimentos devia ser sem fermento (Levítico 2:11) descrevia a ausência de pecado em Jesus, pois Ele “se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus” (Hebreus 9:14), e Ele era “imaculado” (1 Pedro 1:19). A colocação de óleo na oferta de alimento tipificava a unção de Jesus com o Espírito Santo (Mateus 3:16; Atos 10:38; Hebreus 1:9; Isaías 61:1). Todas essas características eram necessárias para provar que Jesus era ideal para ser o sacrifício expiatório para os pecados do homem.

Levítico 3 apresenta a oferta de sacrifício pacífico, que descreve mais o resultado da obra expiatória de Cristo do que a própria obra. A oferta poderia ser um macho ou fêmea, ou um boi, ovelha ou bode, mas tinha de ser sem mancha. O ofertante tinha de se associar a essa oferta colocando sua mão sobre a cabeça dela, então depois que a oferta era feita tanto o ofertante quanto o sacerdote recebiam uma parte do animal para comer. I. M. Haldeman diz:

Sua característica peculiar é que o ofertante e o sacerdote cada um recebia uma parte dela. Devia ser comida diante do Senhor. Comer diante do Senhor é ter comunhão com o Senhor. É um quadro de Deus e o pecador em paz um com o outro, todas as questões entre eles perfeitamente resolvidas. É paz na base de um sacrifício mutuamente aceito. É um quadro de reconciliação. Pela morte da cruz nosso Senhor Jesus Cristo satisfez a lei, o governo e a natureza divina. Em virtude dessa satisfação Ele reconciliou o mundo a Si; conforme está escrito: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados” (2 Coríntios 5:19). — Tabernacle, Priest­hood and Offerings (Tabernáculo, Sacerdócio e Ofertas), p. 355. Fleming H. Revell Company, New York, 1925.

O ato de comer esse sacrifício descreve o ato de se apropriar da paz de Deus, mas não só a apropriação que ocorre pela fé no momento da salvação, porém em vez disso aquela constante apropriação dela em nossas vidas diárias, conforme está escrito: “Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo; Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (Romanos 5:1-2). Alguns manuscritos requerem que essa passagem seja traduzida assim “…tenhamos paz”, que frisa o fato de que temos de nos apropriar dessa paz diariamente.

A paz nos foi comprada pela obra redentiva de Cristo conforme declaram muitas passagens das Escrituras (Efésios 2:14-18; Colossenses 1:20-22; 1 Pedro 5:14; Lucas 7:50; Atos 10:36), mas, para que possamos gozá-la de modo pessoal, temos de nos apropriar dessa paz pela fé de maneira pessoal dia a dia como está escrito: “Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti; porque ele confia em ti” (Isaías 26:3).

A oferta da expiação do pecado e a oferta da expiação da culpa lidam mais especificamente com a expiação. Portanto, a maioria das referências à expiação tem a ver com essas duas ofertas em Levítico 4 e 5. A diferença entre essas duas ofertas é que a oferta da expiação do pecado era suprida para lidar com a natureza pecadora, ou princípio de pecado, enquanto a oferta da expiação da culpa era para lidar com os pecados da natureza, ou práticas de pecado; ou, para explicar de outro jeito, a oferta da expiação do pecado era para lidar com a raiz do pecado enquanto a oferta da expiação da culpa era para lidar com o fruto do pecado.

A oferta da expiação do pecado devia ser feita para todas as classes de pessoas, e detalham-se quatro exemplos específicos (Levítico 4:3,13,22,27), pois embora haja diferença no grau de pecado em diferentes pessoas, não há diferenças no fato do pecado, pois está escrito: “Já dantes demonstramos que, tanto judeus como gregos, todos estão debaixo do pecado” (Romanos 3:9). “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Romanos 3:23). “Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia” (Romanos 11:32).

No caso de um sacerdote pecando ou a congregação inteira pecando, o touro era levado para fora do acampamento e queimado, e assim uma expiação era feita e seus pecados eram perdoados (Levítico 4:20-21). Não ficamos em dúvida quanto ao sentido típico disso, pois lemos: “Porque os corpos dos animais, cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta” (Hebreus 13:11-12).

A oferta da expiação da culpa é o assunto de Levítico 5, e apresenta a provisão do Senhor para lidar com os frutos do pecado, onde vários exemplos dessa provisão são dados nos versículos l?5. Neste capítulo, repete-se quatro vezes a declaração de que quando um homem oferecer uma oferta, o sacerdote fará expiação pelo seu pecado, e lhe será perdoado, o que mostra que o Senhor fez um sacrifício adequado, não só pelos pecados cometidos até o tempo da salvação, mas todos os pecados subseqüentes também. Entretanto, é claro, assim como o homem em Levítico 5 tinha de trazer sua oferta, e com isso confessar seu pecado antes que ele pudesse receber a garantia do perdão, assim também ocorre no perdão antitípico, pois 1 João 1:7-10: “Mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado. Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça. Se dissermos que não pecamos, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós”.

Dá para se observar aqui como em Levítico 5 que o sangue que inicialmente purifica na salvação continua a purificar os pecados após a salvação, e aqui mais do que em qualquer das outras ofertas vemos a suficiência da expiação e a conexão da expiação com perdão (veja Levítico 5:10,13,16,18).

As ofertas do Antigo Testamento eram apenas típicas. Portanto, não tinham nenhuma real eficácia de expiação em si; eram simplesmente lições práticas que antecipavam o real sacrifício expiatório dAquele que viria.

A relação que os escritores do Novo Testamento em toda parte reconhecem como subsistindo entre os sacrifícios judaicos e a morte de Cristo com clareza requerem que estimemos a morte de Cristo como vicária. Muitos dos sacrifícios judaicos eram inquestionavelmente expiatórios e vicários, no sentido de que seu ofertante, colocando as mãos sobre a cabeça das vítimas, os apresentava a Deus como substitutos das penalidades que ele mesmos merecia (Levítico 1:4; 4:1?13; 7:7; 16:5,9,10, 21, 22; 23:27,28; Êxodo capítulo 12; Deuteronômio 16:5, 6; compare 9:13, 22). Mas os sacrifícios expiavam, no sentido de satisfazer as penalidades do pecado, apenas para aqueles que tinham atendido a imposição exigida de mãos sobre as vítimas que eles ofereciam; e mesmo então, as penalidades removidas eram somente aquelas que tinham a ver com a vida externa, e jamais com a vida interna da alma. O que os sacrifícios judaicos, continuamente repetidos, assim realizavam cerimonialmente e externamente para o judeu, o sacrifício de Cristo, oferecido uma só vez por todos, realiza de fato dentro do coração do cristão. O primeiro foi meramente um tipo do segundo (Hebreus 9:9,26; 10:1,4; 1 Coríntios 5:7; Efésios 5:2; Gálatas 3:23, 24; Hebreus 10:5,7,12). — E. G. Robinson, Christian Theology (Teologia Cristã), pp. 270­-271. Press of E. R. Andrews, Rochester, New York, 1894.

Poderia-se dizer muito mais acerca das ofertas no Antigo Testamento, mas isso tomaria muito tempo e espaço, e nosso interesse principal é mostrar que essas ofertas prefiguravam a obra redentiva de Cristo, e cremos que já mostramos esse fato suficientemente. Portanto, passamos a notar:

II. A EXPIAÇÃO PREFIGURADA NOS CULTOS.

Com isso queremos dizer que todos os utensílios, materiais e pessoas envolvidas na adoração do tabernáculo de algum modo tipificavam a obra redentiva do Senhor Jesus Cristo. É a isso que se refere Salmo 29:9 quando diz, “…no seu templo cada um fala da sua glória”, que também pode ser traduzido: “…todo pedaço do templo expressa glória”. A palavra “glória” é usada acerca da obra redentiva de Cristo em Romanos 9:22-24: “E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” O próprio Jesus disse: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer” (João 17:3-4).

A obra sacerdotal de Cristo foi prefigurada em Aarão, e naqueles que o sucederam como sumo sacerdote, conforme está escrito: “Ora, a suma do que temos dito é que temos um sumo sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da majestade, Ministro do santuário, e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o homem. Porque todo o sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e sacrifícios; por isso era necessário que este também tivesse alguma coisa que oferecer. Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei, Os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais” (Hebreus 8:1-5). A. W. Pink observa acerca dessa passagem:

O céu é aí chamado de “o Santuário” porque é ali que realmente habita e de fato reside tudo o que foi tipicamente prefigurado nos lugares santos do tabernáculo de Israel… Foi um tempo de alegria para Israel quando Aarão entrou no santo dos santos, pois ele carregava consigo o sangue que fazia expiação por todos os pecados deles. Assim a presença de Cristo no céu, defendendo a eficácia de Seu sangue meritório, deveria encher o coração de Seu povo de alegria inexprimível: cf. João 14:28. — Exposition of Hebrews (Exposições de Hebreus), Vol. I, p. 430. Baker Book House, Grand Rapids, 1954.

Em todo o livro de Hebreus, que é um comentário e explicação divina do sistema mosaico, Cristo é tanto comparado quanto contrastado com os sumos sacerdotes levíticos: comparado à medida que O tipificavam, e contrastado à medida que Ele é o “melhor sacerdote”, a garantia de uma “melhor aliança”, o mediador de uma “melhor aliança que está confirmada em melhores promessas”, porque foi realizada com “sacrifícios melhores” do que os sacrifícios mosaicos (Hebreus 7:22; 8:6; 9:23).

Os utensílios do Tabernáculo também tipificavam a obra redentiva do Senhor Jesus Cristo, e de fato todos os materiais que entraram na composição de sua construção também tipificavam, mas para que não tornemos este presente capítulo desnecessariamente longo: confinaremos nossos comentários aos utensílios do Tabernáculo. Havia sete peças de utensílios no Tabernáculo e pátio adjacente, e esses eram, enumerando-os de dentro para fora: A Arca da Aliança, o Propiciatório cobrindo a Arca, o Altar de Incenso, a Mesa da Proposição, o Candelabro, a Pia de Cobre e o Altar de Cobre. Não só cada um desses utensílios individualmente tipificava a obra redentiva de Cristo, mas até mesmo também sua ordem no Tabernáculo era importante, pois formavam uma cruz, e cada um estava em seu lugar lógico no que se referia à verdade redentiva que cada um representava.

Com relação ao caminho para o homem se aproximar, a ordem dos utensílios é inversa da ordem dada acima. A primeira coisa que chamava a atenção quando se entrava na entrada do pátio era o Altar de Cobre. Era ali que os sacrifícios eram trazidos para serem oferecidos pelos pecados; aí era feita a oferta queimada; Êxodo 27:1-8 a descreve. Esse altar era feito de tábuas cobertas de cobre; o cobre simboliza o juízo enquanto as tábuas simbolizam a humanidade do Senhor Jesus; assim, o cobre simboliza Jesus levando o juízo do pecado em Seu próprio corpo na madeira da cruz. I. M. Haldeman diz:

O Altar de Cobre permanecia diante da entrada do Tabernáculo. A Cruz de Cristo permanece diante da entrada do Céu. Só com o sangue do Altar de Cobre poderia se entrar no Tabernáculo. Só por meio da cruz como um altar de sacrifício alguém pode entrar no superior Tabernáculo Santo, no próprio Céu… Assim como uma tentativa de passar pelo Altar de Cobre sem ter uma vítima sacrificial ali seria zombar desse Altar, assim também qualquer tentativa de desprezar a Cruz como o Altar de um sacrifício penal, e todo esforço para se aproximar de Deus com palavras meramente boas elogiando a vida bela de Cristo, zombaria terrivelmente de Sua cruz e poderia bem fazer recair a indignação e o anátema de Deus. — Tabernacle, Priesthood and Offerings (Tabernáculo, Sacerdócio e Ofertas), p. 244. Fleming H. Revell Company, New York, 1925.

O item seguinte dos utensílios era a Pia de Cobre. Esse também era de cobre e simboliza juízo, mas nesse caso, o cobre era polido até ter o brilho de um espelho; aliás, foi feito de espelhos de cobre doados pelas mulheres de Israel (Êxodo 38:8). Foi feito a fim de reservar água para a lavagem dos sacerdotes. Sua posição atrás do Altar de Cobre fala daquilo que ocorre depois da regeneração. Fala do cristão julgando a si mesmo enquanto se olha no espelho da Palavra de Deus, vê suas falhas e é purificado pela força de Cristo. “Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; Porque se contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era. Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito” (Tiago 1:23-25). “Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra” (Efésios 5:25-26). “Disse-lhe Jesus: Aquele que está lavado não necessita de lavar senão os pés, pois no mais todo está limpo. Ora vós estais limpos, mas não todos” (João 13:10). O Altar de Cobre simbolizava a provisão de Cristo para purificar os pecados cometidos após a regeneração. Simboliza a purificação mencionada em 1 João 1:7? 10.

O Candelabro de Ouro era de uma peça inteira de ouro batido, e seu peso era de um talento (Êxodo 37:24), ou aproximadamente 43kg. Simbolizava Cristo, não só como a “Luz do mundo”, mas também como a “verdadeira Luz” (João 1:9), “uma Luz para os Gentios” (Isaías 42:6), pois não podemos ter a luz espiritual necessária para ter comunhão com o Pai exceto como a achamos nAquele que veio para declará-Lo (João 1:18). Esse candelabro devia iluminar a escuridão do Santo Lugar de modo que os sacerdotes pudessem ter comunhão em volta da Mesa da Proposição; assim temos de andar “na luz, como Ele na luz está” se quisermos ter comunhão (1 João 1:5?7).

A Mesa da Proposição, como o Candelabro e o Altar de Incenso, estava no Santo Lugar. Era feita de madeira coberta de ouro puro, tinha uma coroa ao seu redor, e tinha doze pães em cima. Uma mesa sugere duas coisas: (1) Sustento (2) Comunhão. A Mesa da Proposição tipificava o Deus-homem (ouro e madeira unidos), mas na medida em que tinha uma coroa ao seu redor, se refere a Ele em Seu estado glorificado (Hebreus 2:9). Ele não só é Aquele que nos salva, mas também Aquele que sustenta nossa vida espiritual porque Ele é o “Pão da Vida” e aqueles que se alimentam dEle nunca terão fome (João 6:52-58); mas Ele também nos mantém num estado de comunhão com Seu Pai (Hebreus 7:25).

O Altar de Incenso era também feito da madeira coberta de ouro puro e tinha uma coroa ao redor de seu topo. Portanto, tem muito do mesmo simbolismo da Mesa da Proposição. De todas as mobílias, era a mais próxima do Santo dos Santos, estando muito próxima a cortina que separava o Santo Lugar do Santíssimo. Devia ter uma nuvem de incenso perpétuo subindo desse altar, no qual se aspergia o sangue da expiação no Dia da Expiação que era guardado a cada ano. Era quadrado, como era o altar de cobre, que fala de universalidade, e assim tinha um simbolismo tão extenso quanto tinha o Altar de Cobre. Portanto, esse altar simbolizava o Deus-homem em Seu estado glorificado no céu, não só como os sacrifícios expiatórios, mas também como Aquele que fazia constante intercessão pelos santos. O incenso fala de oração e louvor (Salmo 141:2; Apocalipse 5:8), e Cristo como mediador ora por eles, mas apenas eles, os quais estão incluídos na expiação (João 17:9). Mas a conexão desse altar com o Altar de Cobre — o sacrifício era oferecido no Altar de Cobre, mas o sangue era aplicado ao Altar de Incenso, e o fogo do Altar de Incenso era tirado do Altar de Cobre (Levítico 16:12?13) — mostra que não se pode separar a obra da mediação de Cristo de Sua obra expiatória. Depois de citar Hebreus 9: 24, I. M. Haldeman diz:

Aqui está a verdade gloriosa — Ele está no Céu como o representante do crente. Assim como Ele o representou na cruz e sofreu por ele, assim também Ele está no Céu vivendo por ele. Assim como Ele se fez o pecado do crente na cruz, assim também Ele é a justiça do crente no Céu. Assim como Ele é nossa justiça no Céu e foi aceito à direita do Pai, sentando-se ali como Seu amado Filho, assim também é verdade que Deus o Pai nos vê assentados com Ele e como propriedade e filhos aceitos por Ele. Portanto, está escrito: “E nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” (Efésios 2:6). Dívida paga, recibo vivo concedido, levado ao Céu, sentado à direita de Deus, tão perto de Deus que mais próximo não podemos estar, pois na pessoa de Seu Filho — nós estamos tão perto quanto Ele. Poderíamos pedir mais para nos fazer sentir seguros? Humanamente falando, eu devia dizer: “Não!” Mas Ele fez muito mais por nós. Aqui está a declaração crucial: “e também intercede por nós” (Romanos 8:34) — Tabernacle, Priest­ and Offerings (Tabernáculo, Sacerdote e Ofertas) p. 231. Fleming H. Revell Company, New York, 1925.

A Arca da Aliança era também de madeira coberta de ouro, e também tinha uma coroa ao seu redor, de modo que simbolizava Cristo em Seu estado glorificado, assim como o Altar de Incenso e a Mesa da Proposição. O cumprimento desses símbolos vem declarado em Filipenses 2:6-11. A Arca continha temporariamente o vaso de ouro do maná, a vara de Aarão que brotou, e as duas tábuas de pedra (Hebreus 9:4). Só as duas tábuas de pedra que continham a Lei eram deixadas permanentemente na Arca (1 Reis 8:9). O vaso de ouro do maná fala de Cristo como o “pão da vida” (João 6:48?51), e na medida em que o vaso continha só uma ómer (Êxodo 16:33), que era a quantidade para um homem (Êxodo 16:16), mostra que o homem é tratado individualmente na redenção. A vara de Aarão que brotou havia sido colocada na Arca como testemunho contra Coré e os outros rebeldes que tentaram se exaltar para entrar no sacerdócio; essa vara foi colocada na Arca para dar prova de que “E ninguém toma para si esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Arão. Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, Hoje te gerei” (Hebreus 5:4-5). As duas tábuas da lei foram postas na arca de madeira (Deuteronômio 10:1,2) para frisar que Cristo guardava a lei de modo perfeito em Sua humanidade (Salmo 40:6-8; João 6:38; 8:29).

O Propiciatório cobria a Arca, e é sempre associado com a Arca. Era feito totalmente de ouro: assim como era o Candelabro, essas duas peças eram as únicas duas peças da mobília que eram exclusivamente de ouro. Essa totalidade de ouro fala de deidade pura. O Propiciatório, sendo uma cobertura da Arca e tudo o que ela continha, fala de expiação, pois o sentido raiz da palavra hebraica traduzida “expiar” é “cobrir”. Em Hebreus 9:5 se menciona o propiciatório, e a palavra grega é hilasterion, que é usada também em Romanos 3:25 acerca de Cristo como o sacrifício expiatório. Em 1 João 2:2 e 4:10, uma forma levemente diferente da palavra é utilizada (grego hilasmon), que vê Cristo como o próprio sacrifício. O Propiciatório era onde Deus prometia se encontrar com os israelitas (Êxodo 25:22); era a habitação de Deus (Salmo 80:1); e Seu trono (Salmo 99:1); mas era um trono aspergido com sangue, e o único lugar em que um homem pecador poderia se encontrar com Deus; era um emblema ideal de Cristo, o único mediador entre Deus e o homem (1 Timóteo 2:5). O Antítipo disso se acha em Apocalipse 5:6: “E olhei, e eis que estava no meio do trono… um Cordeiro, como havendo sido morto”.

Como o Propiciatório simboliza nosso Senhor Jesus Cristo (assim as Escrituras declaram) e o Propiciatório que estava sobre a Arca da Aliança que simboliza o trono de Deus (assim declaram as Escrituras) e como se poderia ver o Propiciatório só depois que se havia oferecido o sacrifício no dia da expiação, então se tem um perfeito quadro pictorial de nosso Senhor depois que Ele se ofereceu na cruz como um sacrifício pelo pecado, depois que Ele ressuscitou dos mortos, subiu ao Céu e sentou-se no trono de Deus. O Tipo e o antítipo estão completos. — I. M. Haldeman, Tabernacle Priesthood and Offer­ings (Tabernáculo, Sacerdócio e Ofertas), p. 178. Fleming H. Revell Company, New York, 1925.

Todas as mobílias do Tabernáculo simbolizavam algum aspecto da pessoa ou obra de Cristo, e assim todas tinham relação com a expiação direta ou indiretamente, e assim encontravam seu cumprimento em Cristo. Portanto, deixaram de vigorar quando se cumpriram. O que A. A. Hodge diz acerca dos sacrifícios poderia se dizer de modo geral acerca do sistema inteiro do Tabernáculo. Ele diz:

Os sacrifícios de touros e bodes eram como notas promissórias, que eram aceitas pelo seu valor representativo até o dia do acerto. Mas o sacrifício de Cristo era o ouro que absolutamente extinguia toda dívida por seu valor intrínseco. Daí, quando Cristo morreu, mãos sobrenaturais rasgaram de cima até embaixo o véu que separava o homem de Deus. Quando a expiação verdadeira foi consumada, o sistema simbólico inteiro que a representava se tornou funetum?officio, e foi abolido. Logo depois disso, o templo foi totalmente demolido, e a realização dos rituais se tornou impossível. — Popular Lectures (Palestras Particulares), p. 247 (citado in A. H. Strong, Systematic Theology (Teologia Sistemática), p. 728. Fleming H. Revell Company, New York, 1954.).

Mas não só a expiação foi prefigurada nos sacrifícios e nos cultos do Tabernáculo, mas também estava prefigurada nas sete grandes festas anuais que o Senhor havia ordenado que Israel guardasse; daí temos de considerar:

III. A EXPIAÇÃO PREFIGURADA NOS SÁBADOS.

Essas festas são declaradas e delineadas em Levítico 23, e se contarmos os Sábados semanais, vemos que Israel tinha oito “dias santos”. Este capítulo é bem duro com aqueles legalistas que dizem que o sétimo dia da semana é o único sábado, pois vemos vários exemplos em que dois dias consecutivos eram chamados de Sábado, e em que no curso de doze dias poderia haver cinco dias chamados de Sábado. No sétimo mês dos calendários judaicos vemos no mínimo oito Sábados, ou uma média de dois por semana. Temos de nos lembrar de que os judeus guardavam o mês lunar de vinte oito dias cada, e eles tinham seu próprio jeito de findar o ano de modo que ocorresse bem de acordo com a rotação solar. Há muitos Sábados diferentes no Antigo Testamento. B. H. Carroll os enumera como segue:

(1) O Sábado semanal (2) O Sábado lunar ou mensal (3) Os Sábados anuais — aqueles sábados ligados ao Dia da Expiação, a festa das semanas, o Pentecoste, as Trombetas e Colheitas, e vários outros Sábados anuais (4) Então o Sábado da terra, ou todo sétimo ano (5) Então o Sábado do ano do Jubileu, ou todo ano cinqüenta. Esse é um ciclo sabático. Cada um é um sábado de um certo período. — An In­terpretation of the English Bible (A Bíblia em Inglês Interpretada), Vol. II, p. 364. Broadman Press, Nash­ville, Tennessee, 1947.

Esses “Sábados” eram, conforme Colossenses 2:17 nos diz, “sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo”, e assim simbolizavam coisas que Cristo cumpriu em Seu ministério de redenção. Aí, contrasta-se a sombra com o corpo ou essência que lança a sombra, e nos mostra que essas coisas eram símbolos. Deve-se observar que a palavra “Sábado” aí está no plural e tem referência não meramente ao sábado semanal, mas em vez disso a todos os Sábados ou dias de descanso que eram guardados.

A Festa da Páscoa era a primeira dessas sete grandes festas anuais, e comemorava o livramento de Israel da escravidão do Egito conforme a ordem de Êxodo 12. Foi no dia catorze do primeiro mês do ano judaico (Êxodo 12:18; Levítico 23:5), que corresponderia mais ou menos ao primeiro dia de abril de nossos calendários de hoje. Não ficamos em dúvida quanto ao significado desse símbolo, pois lemos em linguagem extraída dessa festa: “Alimpai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais uma nova massa, assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós” (1 Coríntios 5:7). Portanto, essa festa descrevia a obra redentiva de Cristo como o Cordeiro da páscoa.

A festa dos Pães Ázimos estava em imediata conexão com a Páscoa, pois essa festa começava no dia seguinte após a Páscoa, e de fato completa o símbolo que a Páscoa representa, pois o pão ázimo descreve Cristo sem pecado como um cordeiro sacrificial. A festa dos Pães Ázimos é semelhante à Ceia do Senhor em que ambas comemoram a mesma coisa; a festa dos Pães Ázimos aponta para Cristo no futuro, enquanto a Ceia do Senhor aponta para Ele no passado (Veja Êxodo 12:14-20 e 1 Coríntios 5:6-8). Vale notar que Levítico 23 ordena nove vezes que não se deve fazer nenhum trabalho servil nesses dias de festa, o que mostra que as coisas descritas eram coisas nas quais não havia participação dos atos do homem, mas que Deus era o realizador. A redenção é apenas pela graça, e até mesmo os símbolos devem representar disso.

A Festa das Primícias ocorria no começo da colheita, e era, primeiramente, um reconhecimento da generosidade de Deus ao lhes dar as colheitas, mas também testificava simbolicamente de Cristo “as primícias dos que dormem” (1 Coríntios 15:20). O tempo da oferta do molho das primícias era no dia depois do sábado (Levítico 23:10, 11), e essa festa se cumpriu em Mateus 28:1 e Marcos 16:1-6. Cristo sendo “as primícias dos que dormem” torna óbvio que ninguém jamais ressuscitou dos mortos antes dEle, e é esse assunto que Pedro discute em Atos 2:29, 34?36. Todo judeu ortodoxo cria numa ressurreição dos mortos, mas eles não haviam ouvido de uma ressurreição de entre os mortos, que só tem a ver com Cristo e os crentes. Na Festa das Primícias comemora-se a ressurreição de Cristo que completa a obra redentiva, e garante a ressurreição de todos os que estão incluídos na aliança da redenção.

A Festa do Pentecoste, ou Colheita, ocorria cinqüenta dias após a apresentação do molho das primícias, quando uma nova oferta de alimentos era apresentada ao Senhor. O cumprimento dessa festa em Atos 2 acentua o fato de que simbolizava o resultado da obra redentiva de Cristo em vez da própria obra; e até os pães utilizados nessa festa acentuam a mesma coisa, pois eram assados com fermento (Levítico 23:17), que tipifica o pecado, ao passo que a Festa dos Pães Ázimos representava a vida sem pecado de Cristo. Os dois pães representam o fato de que os salvos vêm de entre tanto os judeus quanto os gentios.

A Festa das Trombetas era o quinto dos grandes dias de festa, e caía no primeiro dia do sétimo mês. No Novo Testamento, a palavra “trombeta” é muitas vezes associada com a volta de Cristo (Mateus 24:31; 1 Coríntios 15:52; 1 Tessalonicenses 4:16). Não só isso, mas nessas passagens que falam da volta de Cristo, se revela o caráter festivo de alegria, consolo e ações de graças (1 Coríntios 15:57; 1 Tessalonicenses 4:18). Se Deus lida com o homem na base de uma “semana” de epócas, consistindo aproximadamente de mil anos cada, conforme parece ser verdade, então essa festa é fiel ao modelo. Todas as festas estão na ordem cronológica certa até agora, e também parece que estamos agora bem no anoitecer do dia de sexta-feira do mundo, de modo que o próximo grande evento é o toque da trombeta anunciando o segundo advento do Senhor, e o sétimo “dia” do mundo.

A Festa da Expiação vinha apenas dez dias depois da Festa das Trombetas, e diferia de todas as outras festas em que era um dia de aflição da alma e luto, ao passo que as outras festas eram ocasiões de grande alegria. Não é sem motivo que está assim ordenado, pois a Festa da Expiação representa o tempo da expiação nacional dos pecados de Israel, quando toda a nação que sobreviveu o “tempo de angústia para Jacó” (Jeremias 30:7), apenas um terço da nação (Zacarias 13:8?9), olhará para Aquele a quem traspassaram (Apocalipse 1:7), e chorará diante dEle (Zacarias 12:10?12; 13:1), e a nação toda experimentará o novo nascimento ao mesmo tempo (Isaías 66:7?10). Embora a expiação de Cristo tivesse sido feita para os gentios bem como os judeus, porém essa passagem evidentemente só descreve o renascimento de Israel; a ordem dessa festa confirma essa verdade, pois ela ocorre depois da festa que representa o arrebatamento dos santos, e antes da festa que representa a eternidade.

A Festa dos Tabernáculos, que era também chamada de Festa da Colheita (Êxodo 23:16; 34:22), ocorria também no sétimo mês do calendário judaico; esse mês era o fim do ano de acordo com o calendário civil, e tal fato em si mostra que esse término do ano tem a ver com o fim das ações de Deus para com o homem. Essa festa era tanto comemorativa quanto profética; comemorava o fato de que Israel habitava em segurança em cabanas no deserto depois de ser conduzido em sua saída do Egito; Levítico 23:42?43 declara isso. Era profética em que representava Deus habitando (entabernaculando) no meio dos homens na terra; isso se cumpriu parcialmente no primeiro advento de Cristo, pois a palavra grega esk?n?sen em João 1:14 significa literalmente “entabernaculou”. Essa festa será guardada por todas as nações “ovelhas” que tiverem o privilégio de entrar no reino milenial (Zacarias 14:16-17). O cumprimento completo e final desse símbolo, porém, será a entabernaculação eterna de Deus com o homem conforme mostra Apocalipse 21:1-3. Essa festa começou no primeiro dos sete dias, mas devia também ser uma santa convocação no oitavo dia (Levítico 23:33-36). O número oito é quase sempre associado com novos começos, e assim é aqui: o novo começo da eternidade. Acerca de Levítico 23 A. Coates comenta:

Então há um belo ensino duplo no capítulo diante de nós de algo muito além da “festa das cabanas”. Essa festa dura sete dias, mas no seu fim há um “oitavo dia”. Creio que a alegria do milênio conduzirá os santos na terra a desejar e aguardar o que é eterno, e não tenho dúvida de que eles chegarão ao “oitavo dia” na nova terra, quando o tabernáculo de Deus estará com os homens, e Deus será tudo em todos. — An Outline of Leviticus (Esboço de Levítico), pp. 261-262. Stow Hill Bible and Tract Depot, Kingston?On?Thames, sem data.

Em Levítico 23:44, essas festas são chamadas de “as solenidades do Senhor”, mas foram de tal forma corrompidas no primeiro século que eram chamadas apenas de “as festas dos judeus” (João 5:1; 6:4; 7:2). É de pouco maravilhar que era tão difícil ver algum simbolismo espiritual nessas festas, pois haviam se tornado carregadas de tradições e inovações humanas. Apesar disso, no começo, as festas, o tabernáculo e toda a sua mobília, e todos os sacrifícios, tinham um simbolismo que de algum modo e grau tratava a expiação de Cristo. Não é de surpreender que muita gente não entenda esse significado quando consideramos o número reduzido dos que entendem o evangelho hoje ao ser anunciado numa linguagem bem clara. A verdade é que o homem por natureza não tem amor algum pela verdade espiritual, e ele cega sua mente ao evangelho. Se alguém aceita a verdade quer em símbolo ou na essência é devido à iluminação do Espírito de Deus, e não a algum dom natural ou receptividade. Como todos temos de ser gratos pelo fato de que fomos escolhidos para ser redimidos e fomos conduzidos à verdade da redenção. Todo louvor ao nosso gracioso Senhor.

SEÇÃO 4

A EXPIAÇÃO COMPRADA

Até este ponto em nosso estudo, vimos lidando com a Expiação a partir de um foco no tempo além do próprio cumprimento dessa grande obra, mas nossa meta agora é considerar o próprio cumprimento de todos os propósitos, promessas e prefigurações dessa obra durante as épocas. A realização da Expiação foi exatamente no tempo certo, de acordo com o programa de Deus, pois muitas vezes vemos, no início da vida e ministério de Jesus, as palavras “Sua hora ainda não havia chegado”, mas a medida em que a Páscoa final em Sua vida terrena se aproximava, lemos: “Ora, antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim” (João 13:1). E de novo: “Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (Gálatas 4:4-5).

A “plenitude dos tempos” significa mais do que a chegada da hora decretada; significava o tempo em que todas as operações preliminares da providência divina haviam se completado, em que o palco estava completamente preparado para esse evento sem paralelo, em que a necessidade do mundo havia sido demonstrada de forma total. O advento do Filho de Deus a esta terra não foi um evento isolado, mas o clímax de uma longa preparação. Que Ele era agora “nascido de mulher” era o cumprimento do anúncio divino em Gênesis 3:15 e Isaías 7:14. Que Ele era “nascido sob a lei”, qual Seu povo havia quebrado, fornece a chave para aquilo que em outras circunstâncias seria um mistério inexplicável — aliás, esse fato lança abundante luz nas experiências mediante as quais Ele passou de Belém ao Calvário. — A. W. Pink, The Doctrine Of Reconciliation (A Doutrina da Reconciliação), p. 57. Associated Publishers And Authors, Grand Rapids, Michigan, 1971.

Assim, ocorrendo “na plenitude dos tempos”, a obra redentiva de Cristo teve muitos séculos de preparação e instrução de pessoas para ajudá-las a entender o que tudo estava envolvido quando João disse: “No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29); ou o que o próprio Jesus quis dizer quando disse: “Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mateus 20:28). Bastaria a palavra “resgate” para provocar muitos pensamentos profundos no judeu pensativo. R. W. Dale declara explicitamente:

Para um judeu um resgate era o dinheiro que um homem pagava para recuperar a posse de sua herança quando ele a tinha deixado (Levítico 25:25 27); era o preço que ele pagava quando ele comprava a liberdade de qualquer pessoa que era “um dos seus parentes” que havia se tornado escravo de um estrangeiro (Levítico 25:47 49); era o que ele dava em troca pela vida do primogênito de um animal impuro com o qual ele queria ficar, e que a lei exigia que ele ou redimisse ou destruísse (Números 18:15; Êxodo 13:13; 34:20); era os cinco siclos que ele tinha de pagar pela vida de seu filho primogênito (Números 18:16); era o meio siclo que todo homem de mais de vinte anos de idade tinha de pagar no censo, para desviar juízos divinos — “dinheiro das expiações” — um preço que todo homem pagava por sua vida (Êxodo 30:12,13,16); era o dinheiro que os pais, a esposa, filho, ou irmão de um homem que havia sido morto por um boi, já conhecido como animal feroz e perigoso, reivindicasse do dono, e o dono tinha permissão de viver somente com o pagamento desse dinheiro (Êxodo 21:29 30). — The At¬onement (A Expiação), pp. 76 77. Congregational Union of England and Wales, London, 1896.

Boa parte do Antigo Testamento olha para o futuro, em profecia e tipo, para a pessoa e obra de Cristo, e encontrou seu cumprimento perfeito apenas nEle; o livro de Hebreus, sendo um comentário divino acerca do Tabernáculo e seus serviços e sacrifícios, mostra como grande parte do Antigo Testamento era uma preparação e prefiguração de eventos futuros. Muitos contemporâneos de Cristo não aceitariam essa verdade, e muitos hoje vêem a adoração do Antigo Testamento e do Novo Testamento como dois sistemas de religião totalmente sem relação. Não é nosso propósito revisitar o mesmo assunto, que já foi tratado na última seção. Portanto, passamos a notar o cumprimento dessas coisas pelo Senhor Jesus Cristo, observando:

I. CRISTO COMPROU A EXPIAÇÃO.

A mediação de Cristo se baseia nesse fato, pois está escrito: “Mas agora alcançou ele ministério tanto mais excelente, quanto é mediador de uma melhor aliança que está confirmada em melhores promessas” (Hebreus 8:6). “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo? E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna” (Hebreus 9:14-15)

Não era suficiente que Cristo viesse e vivesse uma vida exemplar na terra; isso jamais poderia redimir alguém, mas Sua presente mediação no céu se baseia no fato de que Ele derramou Seu sangue pela redenção dos pecados cometidos por aqueles que estavam sob a antiga aliança das obras; de nenhum outro modo eles poderiam se tornar participantes de promessas melhores. Ele estava cônscio da necessidade disso desde o começo, pois Ele veio para dar Sua vida “em resgate de muitos” (Mateus 20:28). Muitos textos falam do sofrimento e morte vicária — substitutiva — de Jesus no lugar dos pecadores, e com isso mostram que Ele realizou essa expiação; as palavras “redimir”, “redenção” e “resgate” são muitas vezes usadas para mostrar o aspecto comercial disso, que Ele operou uma expiação comprada.

O ofício de Jesus como pastor do rebanho também salienta Sua obra expiatória, pois está escrito: “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Assim como o Pai me conhece a mim, também eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai” (João 10:11,15,18). Sua obra expiatória é realizada como substituição pelos eleitos, pois Ele entregou Sua vida “pelas” ovelhas. A palavra grega aí traduzida “por” (huper), como a palavra em português, tem um significado duplo; pode significar ou “para o benefício de”, ou pode significar “no lugar de”; o contexto tem de decidir qual dos dois é o sentido tencionado. Nesse caso, esses dois sentidos se aplicam, pois Cristo morreu em nosso lugar, e por Seu sofrimento na cruz, Ele obteve a grande bênção da expiação por nós. Mas jamais devemos nos esquecer de que Ele realizou essa expiação, não enquanto estava debaixo de algum tipo de pressão, mas enquanto estava agindo por livre e espontânea vontade; caso contrário a expiação não teria valor algum para o homem, e teria realmente sido uma injustiça para Cristo. Foi por esse motivo que Cristo se colocou debaixo da lei e a guardou com perfeição indo voluntariamente à cruz.

Para que Cristo tivesse responsabilidade diante da lei, em prol da realização de Sua obra expiatória, era necessário que Ele por livre e espontânea vontade se colocasse debaixo de sua autoridade, de um modo tal que as exigências da lei (sem nenhuma idéia arbitrária, mas espontaneamente e por direito) viessem até Ele; de modo que a justiça não só tivesse direito de cobrar dEle, mas também tivesse de aceitar compensação trazida diretamente por Ele. Que Cristo, quando mediador na Sua humanidade, não estava preso à lei, por alguma necessidade natural, já vimos. Dá para se provar de modo abundante a necessidade absoluta de espontaneidade em Seus sofrimentos. — Samuel Baird, The Elohim Revealed (A Revelação de Elohim), p. 605. Lindsay and Blakiston, Philadelphia, 1860.

Com Sua vida e morte extraordinária, Cristo realizou o que a mente do homem não poderia imaginar, muito menos realizar; a expiação é um empreendimento divino do começo ao fim. Alexander Carson bem diz:

O homem tem feito muitos esquemas de justiça, mas a expiação de Cristo é o plano de justiça de Deus. Todos os esquemas de justiça que o homem inventou foram edificados em cima da lei, mas o plano de justiça de Deus é sem a lei. Embora esse plano satisfaça a lei, porém a lei não contém cláusula alguma para esse plano, que está completamente além da lei. A substituição de Cristo como sacrifício, embora honre a lei, é uma constituição soberana do grande legislador… O povo de Deus é justificado, não por sua própria inocência, ou por suas próprias obras, mas livremente por Seu favor. Esse favor, embora lhes chegue gratuitamente, porém chega mediante a redenção que está em Jesus Cristo. — The Doctrine of the Atonement (A Doutrina da Expiação), pp. 74, 75. Edward H. Fletcher, New York, 1853.

Esse foi o principal propósito de Cristo ao vir à terra, sofrer e ser crucificado, e qualquer perspectiva que coloque qualquer outra coisa como o alvo principal de Sua encarnação é uma perspectiva inadequada de Sua expiação. É claro que Ele curou grandes multidões, e ensinou verdades maravilhosas às pessoas, e Ele revelou um Pai amoroso, mas todas essas características tinham relação secundária com Sua vinda, pois o principal propósito da Sua vinda era reconciliar com Deus um povo alienado. Vários textos das Escrituras falam especificamente de Jesus como um sacrifício reconciliador (Romanos 5:10.11; 2 Coríntios 5:18-21; Efésios 2:16; Colossenses 1:20 22), enquanto outros falam dEle como sacrifício expiatório (Romanos 3:25; Hebreus 2:17; 1 João 2:2; 4:10). E muitos, muitos outros falam dEle como sendo um sacrifício pelo pecado, dEle morrendo por nós, dEle sofrendo pelo pecado, etc.

Essa obra expiatória de Cristo foi realizada tanto para Deus quanto para o homem; isto é, Deus se reconciliou com o homem, e o homem estava se reconciliando com Deus. Os socinianos e os arminianos sustentam que na medida em que o homem é aquele que pecou e se desviou, só ele precisa se reconciliar com Deus. Alguns comentaristas bíblicos (que em outras questões são coerentes) se iludiram da mesma forma nesse ponto por temerem que sustentar que Deus se reconciliou com o homem pela obra de Cristo poderia implicar uma mudança em Deus. C. H. Mackintosh e os Irmãos de Plymouth geralmente sustentam essa posição, bem como outras. É verdade que, no que se refere a Seus eleitos, Deus os amou com amor eterno (Jeremias 31:3), mas, ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que de forma governamental Ele tem de declarar Sua aversão ao pecado em quem quer que se ache, e assim até mesmo os eleitos têm de ser declarados debaixo de Sua ira até o fato de ser reconciliados com Ele; para preservar a justiça de Deus, a expiação tem de ser para Deus e para o homem. J. M. Pendleton diz:

Todas as teorias que ensinam que os aspectos da expiação de Cristo são para o homem e não para Deus virtualmente negam a justiça e santidade de Deus. A perspectiva correta é que a expiação tem referência tanto a Deus quanto ao homem. Sua influência salvadora chega até o homem porque seu mérito propiciatório primeiramente alcança o trono de Deus. É perda de tempo, pois, falar sobre o que a expiação pode fazer ao homem, a menos que faça algo pelo governo de Deus. Isso é tão óbvio que aqueles que dizem que a morte de Cristo não afeta as ações divinas para com os homens, mas só afeta os homens para com as ações divinas, geralmente negam que sua morte foi, em qualquer sentido das palavras, um sacrifício vicário. Não crendo que o Deus de justiça precisava de propiciação a fim de desviar Sua ira santa dos culpados, eles não conseguem acreditar que Jesus morreu como substituto expiador pelos pecadores. Se eles chegam a usar todas essas palavras como propiciação, expiação, substituição, é de temer que muitos deles ajam assim a fim de “enganar os simples”. Dizer que nenhuma influência emana da cruz para Deus equivale a negar todo o valor da expiação nos sofrimentos de Cristo. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), pp. 233 234. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.

Deve-se admitir que as Escrituras jamais falam de Deus se reconciliando com o homem, mas há muitas passagens das Escrituras que falam de uma satisfação sendo prestada a Deus em favor do pecado do homem: “Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para fazer reconciliação pelos [ou literalmente “uma propiciação”] os pecados do povo” (Hebreus 2:17). “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?” (Hebreus 9:14). “Mas este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus” (Hebreus 10:12). “E andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Efésios 5:2)

Não só isso, mas o fato de Jesus ser um mediador é evidência da mesma coisa, pois “o medianeiro não o é de um só” (Gálatas 3:20), mas de dois. Se tudo o que era necessário era a reconciliação do homem com Deus, então um mediador não teria sido necessário, pois então bastaria um mensageiro para cumprir a tarefa, dizendo ao homem que jamais houve um rompimento de sua comunhão com Deus, e que tudo o que era necessário era que ele voltasse para Deus. Jesus sendo o mediador de uma nova aliança (Hebreus 8:6; 9:15; 12:24), é evidência que a expiação era tanto para Deus quanto para o homem.

II. CRISTOU COMPROU A EXPIAÇÃO NA CRUZ.

Não era possível que Cristo redimisse o homem mediante Seus ensinos maravilhosos, nem pela Sua vida sem paralelo, nem mesmo que Ele se tornasse mártir da verdade; todos esses elementos entraram na composição de Sua morte sacrificial, mas nenhum ou todos eles juntos (sem a obra da cruz de Cristo) em nada teriam ajudado para reconciliar o homem com Deus. Ele tinha de levar o sofrimento e a maldição da cruz para realizar uma expiação que seria eficaz ao homem.

Temos de, no começo desta seção, esclarecer um assunto que é causa de engano e tropeço para muitos. Ao falar da “cruz” geralmente não temos referência à cruz literal em si, mas em vez disso usamos a cruz como metonímia — isto é, uma figura de linguagem em que o nome de uma coisa é usado para aquilo que ela sugere ou para aquilo com que ela tem ligação. Assim, o que se quer dizer com “cruz” é a obra expiatória de Cristo que foi realizada na cruz. Se os homens sempre tivessem conseguido reconhecer que é isso o que se quer dizer com as muitas referências à cruz no Novo Testamento, jamais teria surgido a superstição nojenta e ímpia do uso de cruzes reais, a adoração e reza diante de cruzes literais, e a aceitação de uma cruz literal como símbolo cristão. Só raramente no Novo Testamento essa palavra tem referência a uma cruz literal; quase sempre se refere em vez disso à obra expiatória de Cristo que foi realizada na cruz do Calvário.

A cruz foi preordenada como o instrumento da morte de Cristo desde o próprio começo, pois Deus mandou: “Quando também em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e for morto, e o pendurares num madeiro, O seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto o pendurado é maldito de Deus” (Deuteronômio 21:22-23). E o cumprimento dessa profecia vem declarado em Gálatas 3:13: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro”. Assim uma das partes principais da expiação era Cristo tomando nosso lugar e levando nossa maldição, pois não seria a nossa posição se não fôssemos pecadores “dignos do juízo de morte” (Deuteronômio 21:23).

O grande ato de condescendência de Cristo ao ir para a cruz vem descrito em Filipenses 2:6-8: “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. Repetidamente se frisa o fato de que a cruz era o principal propósito da vinda de Cristo à terra — realizar uma expiação que reconciliaria Deus e o homem um com o outro. Sua morte na cruz foi tanto um ato de obediência ao Pai como um ato redentivo, no que se refere ao homem, e gerou paz onde antes só existia inimizade: “E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus. A vós também, que noutro tempo éreis estranhos, e inimigos no entendimento pelas vossas obras más, agora contudo vos reconciliou No corpo da sua carne, pela morte, para perante ele vos apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis” (Colossenses 1:20-22).

É uma coisa estupenda que haja pessoas que deturpem e se ofendam com tal expiação graciosa, mas quem geralmente faz isso são aqueles que confiam em suas próprias obras, e que vêem como casos perdidos os que têm menos moralidade e religiosidade do que eles mesmos. Para todos os propósitos práticos eles rejeitam a obra redentiva de Cristo, muitas vezes protestando que tal plano gracioso de salvação seria, de fato, uma defesa para com o pecado. Paulo teve de se deparar com a mesma objeção em sua época, pois havia então os que objetavam que a graça incentivava os homens a pecar (veja Romanos 3:8). Alguns haviam dito que se onde abundava o pecado, a graça abundava ainda mais, então os homens deviam pecar mais para que a graça abundasse mais (Romanos 6:1). Tal é o raciocínio dos homens que pensam que eles são suficientes em si mesmos sem a obra expiatória de Cristo. Para eles, a obra da cruz de Cristo não é tão valiosa quanto as próprias obras deles.

A importância da obra de Cristo na cruz é percebida em que obteve remissão de pecados para muitos, conforme Jesus disse na instituição da Ceia Memorial: “E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; Porque isto é o meu sangue; o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados” (Mateus 26:27-28)

Ele declarou, aliás, que era para a remissão de pecados que Ele estava para morrer. A morte dEle poderia realizar outras finalidades, mas num tempo em que poderíamos com razão supor que a mente dEle estaria cheia dos objetivos principais e diretos da Sua paixão, esse é apenas um dos quais Ele fala. Seu sangue foi derramado “para remissão de pecados”. — R. W. Dale, The Atonement (A Expiação), p. 69. Congregational Union of England and Wales, London, 1896.

A morte, então, que Ele morreu na cruz foi uma morte única; uma morte tão diferente que ninguém jamais teve tal experiência. Ele morreu como vítima inocente, mas levando os pecados de muitos; Ele morreu voluntariamente, mas compelido pelo amor; Ele morreu na cruz, mas até mesmo quando a vida de Seu sangue estava terminando, Ele era onipotente, tendo as chaves da morte e do Hades. Verdadeiramente, aí estava o paradoxo dos paradoxos: o Criador sendo morto por Suas criaturas, mas essa morte era parte integral do plano de Deus, e necessária para a redenção do homem.

A morte de Jesus na cruz foi um sacrifício expiatório, conforme está escrito: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus” (Romanos 3:25). “Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo” (Hebreus 2:17). “E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 João 2:2). “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados” (1 João 4:10)

A palavra propiciação significa um meio de tornar favorável. Já vimos que a morte de Cristo não comprou o amor de Deus por nós. Não converteu ódio em seu oposto. Mas a morte de Cristo foi um meio de tornar Deus favorável em que Deus pode agora conceder à raça humana as riquezas de sua graça em Cristo porque Cristo está agora unido com a raça. Em sua morte Cristo se identificou eternamente com os homens, e em princípio toda a plenitude que habitava em Cristo pertence à humanidade… Assim a expiação dEle era um meio não de fazer Deus nos amar, mas de tornar o livre exercício de Seu amor possível e coerente com Seu próprio antagonismo inerente ao pecado. — E. Y. Mullins, The Christian Religion in Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Suas Expressões Doutrinárias), p. 324. Judson Press, Phila¬delphia, 1932.

III. CRISTO COMPROU A EXPIAÇÃO COMPLETAMENTE.

A obra redentiva de Cristo não foi em uma medida parcial; o que Ele empreendeu fazer, realizou, e Ele tinha sabedoria divina para cumprir esse plano, de modo que nada faltou ao término dessa transação. Muitas pessoas dizem que a expiação de Cristo “tornou possível a salvação”, e que os homens agora têm de contribuir sua parte a fim de que a transação seja completa e a fim de ter a certeza da salvação. A expiação, porém, não é uma provisão abstrata para os pecadores em geral; sua totalidade se baseia na garantida aplicação de seus benefícios aos alvos escolhidos da misericórdia de Deus. Depois de se referir a Isaías 53:8; Mateus 1:21; 20:28; João 10:11; Efésios 5:25; Tito 2:14; e Hebreus 2:17, A. W. Pink diz:

Aqui estão sete passagens que deram uma resposta clara e simples à nossa pergunta, e o testemunho delas, tanto isoladamente quanto conjuntamente, declaram explicitamente que a morte de Cristo não foi uma expiação pelo pecado de modo abstrato, nem uma mera expressão do desprazer de Deus para com a iniqüidade, nem uma satisfação vaga da justiça divina, mas em vez disso, um preço de resgate pago pela redenção eterna de certo número de pecadores, e uma satisfação completa pelos pecadores específicos deles. É a glória da redenção que não meramente torna Deus aplacável e o homem perdoável, mas que já reconciliou os pecadores com Deus, removeu seus pecados e aperfeiçoou eternamente os que Ele separou. — Exposition of the Gospel of John (Exposição do Evangelho de João), Vol. II, pp. 221 222. Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, 1968.

Temos de apenas considerar todos os textos que lidam com a expiação para ver que a transação foi obra exclusiva do Senhor; o homem só contribuiu com o pecado. Ele deu “a sua vida em resgate de muitos” (Mateus 20:28); Ele “deu a Sua vida pelas ovelhas” (João 10:15); Ele “morreu a seu tempo pelos ímpios” (Romanos 5:6); Ele “se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2:20); Ele “foi feito maldição por nós” (Gálatas 3:13); Ele “se deu a si mesmo em preço de redenção por todos” (1 Timóteo 2:6); Ele “padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1 Pedro 3:18); “Ele deu a sua vida por nós” (1 João 3:16), etc.

Que Cristo estava sozinho nessa transação é óbvio quando consideramos que todos os eleitos dos primeiros quatro mil anos da história do mundo já haviam morrido quando Cristo foi para a cruz, e todos os eleitos dos próximos dois mil anos não haviam ainda nascido quando ocorreu a crucificação, de modo que se o homem tivesse alguma parte nessa expiação, tudo se aplicaria apenas aos que estavam vivos naquela época. Contudo, só um punhado daqueles que professavam ser seguidores de Jesus permaneciam ao redor da cruz quando Jesus morreu, e a maioria deles eram mulheres. É evidente que Jesus estava sozinho nessa grande transação, e o homem em nada contribuiu senão com os pecados que crucificaram o Senhor.

“Mas o homem tem de aceitar esses benefícios da expiação; ele tem de crer na obra redentiva de Cristo”, dirá alguém. Cremos que é mais bíblico dizer que o homem crerá em Cristo quando a obra expiatória lhe tiver sido aplicada, pois é o Espírito Santo que aplica esses benefícios ao homem, e a aplicação desses benefícios está acima da consciência humana, e seu primeiro ato depois disso será clamar em fé ao Senhor. A aplicação da obra expiatória de Cristo a um indivíduo ocorre ao mesmo tempo em que ele nasce de novo, e a tradução literal de 1 João 5:1 revela que esse fato acontece antes da fé: “Quem crê (particípio presente) que Jesus é o Cristo tem nascido (indicativo perfeito passivo, que indica um fato passado com conseqüências que continuam até o presente) de Deus”. O mesmo princípio se aplica aos tempos gramaticais de “crer” e “nascer” em João 1:12 13: o primeiro é tempo verbal presente, mas o segundo é tempo verbal passado.

A fé em si é dom de Deus, conforme muitos textos nos dizem, e é conseqüência do novo nascimento, e não sua causa, de modo que de novo é óbvio que o homem não tem nenhuma parte na realização ou aplicação da expiação de Cristo. Essa realidade é dura para o orgulho e vaidade natural do homem, o que explica o motivo por que é uma verdade tão difícil de receber, mas só ao recebê-la o homem pode prestar a Deus a glória que Lhe é devida. Veja o Capítulo 9, sobre a Fé.

Mas a obra redentiva de Cristo está completa também no sentido de que é eternamente eficaz, pois está escrito: “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hebreus 10:14). Com isso não se quer dizer que as pessoas salvas são automaticamente transformadas em seres perfeitos e sem pecado, mas em vez disso lida com a completa suficiência da expiação, que resultará em tal perfeição logo que se completar a santificação deles. Uma das coisas que os homens do mundo acham tão difícil de entender é que quando alguém é salvo ele recebe uma nova natureza que não mais deseja cumprir os desejos da carne, e sob a santificação progressiva do Espírito, ele triunfará mais e mais sobre a carne, e ao receber um novo corpo será totalmente santificado e o pecado não terá mais lugar nele, nem poder sobre ele. Não é uma questão de “fazer qualquer coisa que ele queira fazer” depois que ele é salvo; quando alguém se coloca debaixo da obra redentiva de Cristo, sua natureza é transformada, e também “a sua vontade”. E. Y. Mullins diz acerca de Cristo:

Ele é o Criador da raça humana. Quando na expiação Ele assume sua responsabilidade, é parte da responsabilidade original envolvida em seu ato criativo. De novo, não é simplesmente o caso de “soltar os criminosos”. Aqueles que são libertos mediante Cristo não são mais criminosos. Ele os transforma em santos de Deus. Ele sustenta uma relação causal com a vida moral e espiritual deles. Ele os recria moralmente. Numa palavra, o ato histórico de Cristo na cruz é também o começo de um processo espiritual vital nos corações humanos. — The Christian Religion In Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Sua Expressão Doutrinária), p. 335. Judson Press, Philadelphia, 1932.

Uma das declarações da perfeição da obra expiatória de Cristo se acha em Hebreus 7:25: “Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles”. O sacrifício de Cristo foi na verdade finalizado na cruz, mas a mediação desse sacrifício continua no céu, de modo que Ele não salva pela metade um de Seus eleitos apenas para vê-lo no fim perdido, mas Ele o salva para sempre. Assim, a expiação de Cristo garante a segurança eterna dos salvos, e qualquer perspectiva da expiação que não enxergue esse fato é uma perspectiva inadequada da obra de Cristo. O próprio fato da intercessão contínua de Cristo em favor do crente torna impossível que ele pudesse chegar a voltar a um estado de alienação de Deus. Ele jamais conseguirá ser tão pecador e rebelde como era quando Cristo o salvou, e se Cristo o salvou quando ele estava no máximo de sua pecaminosidade, certamente Ele poderá continuar a mantê-lo salvo.

Vê-se também a perfeição da obra expiatória de Cristo em sua suficiência para qualquer homem, em qualquer circunstância; os planos do homem envolvendo salvação exigem que boas obras tenham sido praticadas durante um longo período de tempo, mas a expiação de Cristo é suficiente mesmo para o homem em seu leito de morte, pois se baseia totalmente na graça de Deus, completamente à parte de qualquer consideração de valor ou mérito por parte do homem; é por isso que o homem natural tem tal aversão à expiação de Cristo; rouba-lhe qualquer glória por sua salvação. Alexander Carson observa:

Mas a glória da expiação brilha de modo ainda mais surpreendente em sua eficácia para salvar os pecadores, até no momento da morte, livrando-os dos próprios portões do inferno. Os sistemas mundanos de religião não podem dar esperança alguma aos pecadores envelhecidos na maldade; mas o evangelho fala com a alma, como se estivesse pairando sobre os lábios do pecador moribundo. A filosofia não pode dar conforto algum ao travesseiro do homem moribundo, sem hábitos de virtude formados durante muito tempo; e sem tempo para praticar boas obras a fim de dar eficácia ao arrependimento, a religião mundana não ousa falar com nenhuma confiança para o pecador que está morrendo. Mas com a confiança máxima o evangelho chama o espírito que está partindo para olhar para Jesus na cruz e ser salvo. Essa doutrina lança o descrédito máximo em cima da pretensão da virtude filosófica, e é pois abominada por todo homem que acha que a felicidade futura tem de ser a recompensa de um curso de dificuldades e disciplina com renúncias pessoais. Essa perspectiva não coincide com nenhum dos sistemas de sabedoria humana, que tornam a felicidade futura a questão de uma vida virtuosa, de acordo com a adequação, natureza ou razão das coisas. É igualmente abominável para o religioso austero, que acumulou vastos tesouros para obter sua salvação a partir de seus primeiros hábitos religiosos ou os de longa data, sua piedade e sua mortificação. — The Doctrine of the Atonement (A Doutrina da Expiação), pp. 119 120. Edward H. Fletcher, New York, 1853.

Quando consideramos essas coisas, não é de admirar que essa expiação completamente suficiente e graciosa seja desprezada e rejeitada pela vasta maioria do mundo religioso. Essa expiação remove toda razão para o homem ter orgulho e glória, e atribui tudo a Cristo somente para receber a devida glória. A grande canção de redenção que os santos glorificados cantam revela que é somente Cristo que é digno da glória da redenção do homem: “E cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda a tribo, e língua, e povo, e nação; E para o nosso Deus os fizeste reis e sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra” (Apocalipse 5:9-10)

SEÇÃO 5

A PERVERSÃO DA EXPIAÇÃO

Não há verdade das santas Escrituras que o homem não tenha pervertido, e esse fato é de modo especial aplicável à doutrina ora diante de nós, e muitas denominações religiosas de nossos dias aceitam como verdadeiras essas perversões da expiação. O modernismo, como se poderia esperar, tem proeminência especial na defesa de formas pervertidas da expiação. Cremos que a principal causa da maioria das teorias erradas acerca da expiação é a indisposição de o homem reconhecer e admitir o que Deus declara de sua pecaminosidade.

O significado da expiação é que Deus não podia se dar ao homem a ponto de ser indiferente às condições e obrigações morais. A integridade do caráter de Deus e de seu governo moral do mundo têm de ser sustentados até mesmo ao custo infinito para Si mesmo. Ele não podia se dar ao homem, nem podia ele acolher o homem em seu favor sem dar atenção às condições morais. Daí antes que o homem possa ser acolhido e perdoado, ele tem de confessar e repudiar seus pecados. — W. T. Connor, Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 99. Broadman Press, Nashville, Tennessee, 1949.

Essa última frase nessa citação está, assim cremos, na raiz de toda teoria falsa da expiação, pois o homem, não tendo disposição de confessar e repudiar sua pecaminosidade, é forçado a formular uma teoria da expiação que lhe permitirá manter seu orgulho e auto-suficiência, enquanto ao mesmo tempo estiver dando a aparência de ser bíblico em suas convicções acerca dessa grande doutrina. Nem todas as teorias erradas são completamente erradas; podem, de fato, ter muitas verdades, pois devia ser evidente a todos que a falsidade pura seduz poucas almas; requer uma quantidade considerável de verdade misturada com falsidade para se fazer uma isca sedutora para almas ingênuas. Geralmente, o erro está muito mais no que oculta ao que se aumenta à teoria da expiação. T. T. Shields diz:

Ao tratar desse assunto parece-me que é desejável que eu chame sua atenção para algumas perspectivas inadequadas e falhas acerca da expiação — e lhe direi o motivo. Há muitas pregações hoje cujas falha consiste não no que falam, mas no seu silêncio; não no que se diz, mas no que se deixou de dizer.

Suponho que seria possível, se alguém estivesse determinado a matar outra pessoa, usar a arma do veneno; mas li ontem acerca de uma mulher que estava sendo acusada de assassinato por ter matado alguém de fome. Pense nisso: Não se usou veneno algum. Não foi que ela deu àquela pessoa o tipo errado de alimento: ela não deu à vítima absolutamente comida alguma…

Estou certo de que é isso o que fazem alguns pregadores. As pessoas sentam-se debaixo do ministério deles. Elas ouvem a pregação acerca de Cristo, assim pensam elas. Às vezes ouvem acerca de “Cristo crucificado”, mas não há nenhum pedaço de comida na pregação, pois se omitiram as coisas vitais; os princípios vitais do evangelho não foram colocados diante do ouvinte como alicerce sobre o qual a fé possa se apoiar. — The Doctrines of Grace (As Doutrinas da Graça), pp. 91, 92. The Gospel Witness, Toronto, Canadá, sem data.

É com essas teorias diferentes acerca da expiação que desejamos lidar nesta seção presente, e confiamos em que, em seu estudo, seremos advertidos acerca das tramas de Satanás para desviar as almas incautas da grande verdade da obra redentiva de Cristo. Paulo falou desse perigo quando disse: “Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo… Porque tais falsos apóstolos são obreiros fraudulentos, transfigurando-se em apóstolos de Cristo. E não é maravilha, porque o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz. Não é muito, pois, que os seus ministros se transfigurem em ministros da justiça; o fim dos quais será conforme as suas obras”. (2 Coríntios 11:3,13-15)

I. A TEORIA PATRIARCAL ACERCA DA EXPIAÇÃO.

Essa teoria recebeu seu nome a partir do fato de que muitos dos que a sustentavam eram dos chamados “Pais da Igreja”, dos primeiros séculos da atual dispensação. Essa teoria está praticamente extinta hoje, mas a mencionamos de passagem porque o leitor de literatura cristã antiga encontrará referências ocasionais a ela.

Em essência, essa teoria sustentava que a expiação era um resgate pago ao diabo, ao qual a raça humana inteira estava escrava, e embora a raça estivesse presa injustamente por Satanás, porém era necessário pagar-lhe uma compensação equivalente justa pela soltura deles. A teoria veio a ser sustentada a partir de razões diferentes: primeira, numa época em que guerras traziam como conseqüência a tomada de populações inteiras como cativas e mantidas para resgate, era natural que se associasse essa idéia à idéia de um resgate espiritual. Segunda, pelo fato de que os homens falharam a perceber que Deus poderia ser tanto a Parte ofendida pelo pecado do homem quanto Aquele que fez reconciliação por esse pecado, e assim reuniu as partes separadas. Terceira, pelo fato de que os homens falharam em ver que o pecado do homem era uma ofensa contra a justiça de Deus, e que Deus não poderia perdoar o pecado do homem sem uma devida compensação, sem trazer prejuízo à justiça de Deus. Daí, a satisfação que Cristo prestou foi uma satisfação para a justiça de Deus, tornando possível que Deus fosse “justo e justificador daquele que tem fé em Jesus”. (Romanos 3:26)

A teoria dos Patriarcal tinha alguns elementos de verdade, porém os elementos de erro eram tais que davam uma impressão geral mas errônea acerca da expiação. Essa teoria era inadequada porque não levava em consideração todas as coisas envolvidas na obra expiatória de Cristo, nem aplicava corretamente os fatos da obra redentiva de Cristo.

II. A TEORIA DA SATISFAÇÃO DA EXPIAÇÃO.

Quem primeiro apresentou essa teoria foi Anselmo no século onze, e é, por esse motivo, às vezes chamada de teoria Anselmica da expiação. Essa teoria foi subseqüentemente modificada por Abelardo, Bernardo, Pedro Lombardo, Tomás de Aquino e Duns Scotus. Essa teoria passou como a perspectiva ortodoxa por muitos séculos, e foi aceita em suas várias formas por muitos dos reformadores. E. Y. Mul¬lins a define assim:

O pecado viola a honra de Deus. Merece castigo infinito já que Deus é infinito. O homem não pode pagar porque ele é finito e moralmente falido por causa do pecado. Cristo em Sua morte expiatória pagou a dívida. Isso Ele podia fazer pois como Deus Ele podia pagar uma dívida infinita, e como ele não tinha pecado e era humano ele poderia representar os homens. Mas já que ele não tinha pecados, ele não era obrigado a morrer. Daí pela morte ele obteve (de acordo com a teoria católica) um excesso de mérito que podia ser colocado para o crédito dos pecadores. A perspectiva de Anselmo é uma melhoria em cima da teoria do resgate para Satanás, porque conecta a expiação com uma exigência de Deus. — The Christian Religion In Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Sua Expressão Doutrinária), p. 306. Judson Press, Philadelphia, 1932.

Pelo fato de que essa perspectiva representava Cristo como sofrendo um equivalente exato de todo o castigo que era merecido para todos os eleitos, de modo que eles pudessem ser todos perdoados e regenerados, é às vezes chamada de teoria comercial. Mas ver apenas o aspecto comercial da expiação é deixar de ter uma perspectiva plena do assunto, e o fato de que o catolicismo pôde adaptar essa teoria a seu sistema de méritos humanos mostra que na medida em que ele podia assim adaptá-la, a teoria estava errada.

Essa teoria era uma melhoria e avanço evidente em cima da teoria Patriarcal, mas ainda era insuficiente porque lidava tanto em termos abstratos como honra, justiça, satisfação e mérito, que nunca lidou especificamente com as relações pessoais entre Deus e o homem. O erro nessa teoria estava não no que especificava, tanto no que deixava de especificar acerca da expiação de Cristo. Tal erro é evidente a partir do fato de que poderia-se sustentar várias perspectivas diferentes da expiação, cada uma das quais afirmava ser a teoria Anselmica. Aliás, questiona-se se o próprio Anselmo chegou a ver os sofrimentos de Cristo como castigo vicário como muitos teólogos posteriores sustentavam, mas parece ter em vez disso só sustentado que os sofrimentos de Cristo eram apenas uma compensação pela qual os homens culpados eram soltos e justificados.

III. A TEORIA DO EXEMPLO DA EXPIAÇÃO.

Essa teoria foi primeiramente apresentada de uma forma sistemática por Laélio Sócino (1525 1562) e por seu sobrinho Fausto Sócino (1539 1604) da Polônia, embora haja vestígios desse mesmo sentimento nos escritos medievais. Os unitaristas e os teólogos racionalistas de hoje a sustentam. É chamada de a teoria do exemplo porque sustenta que o sofrimento e a morte de Cristo não foram nada mais do que um exemplo de devoção à verdade.

Essa teoria sustenta que a pecaminosidade subjetiva é a única barreira entre o homem e Deus. Não Deus, mas apenas o homem, precisa se reconciliar. O único método de reconciliação é melhorar a condição moral do homem. Só se pode realizar isso mediante a própria vontade do homem através de arrependimento e reforma. A morte de Cristo é apenas a morte de um nobre mártir. Ele nos redime, só como seu exemplo humano de fidelidade à verdade e o dever tem uma influência poderosa em nossa melhoria moral. — A. H. Strong, Systematic Theology (Teologia Sistemática), pp. 728 729. Fleming H. Revell. 1954.

Como se poderia esperar, essa perspectiva fraca acerca da morte de Cristo corresponde a uma perspectiva fraca acerca da pessoa de Cristo por parte dessas mesmas pessoas, pois quase sem exceção aqueles que sustentam essa teoria também negam a deidade de Jesus Cristo. Outro erro que também acompanha essa perspectiva errada da expiação é a perspectiva exagerada acerca da capacidade de o homem corrigir sua própria pecaminosidade e reverter as destruições do pecado. De longe essa é a perspectiva mais deplorável da expiação já considerada, e várias das teorias seguintes têm parte em muitos dos erros dessa também.

À primeira vista, parece que 1 Pedro 2:21 justifica essa perspectiva: “Porque para isto sois chamados; pois também Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas”. Mas essa passagem não tem relação nenhuma com a expiação; tem, isso sim, com nossa atitude debaixo do sofrimento. Primeiro Pedro 2:24, que vem logo em seguida, mostra que no que se refere à expiação, o sofrimento e a morte de Jesus são substitutivos. Portanto, certamente mais do que um mero exemplo. Essa teoria ignora o fato de que se tudo o que era necessário era um exemplo de sofrimento, poderia se achar muitos exemplos melhores do que o de Jesus, pois muitos mártires passaram por sofrimento e morte com resignação mais silenciosa e até com mais alegria do que Jesus, mas a razão para isso é, naturalmente, que Jesus estava sofrendo algo enquanto estava na cruz que nenhuma outra pessoa chegou a sofrer no grau que Ele sofreu. Ele sofreu a própria essência do inferno — separação de Deus — durante aquelas horas de escuridão, e não só o inferno de uma pessoa, mas o inferno que cada um dos escolhidos de Deus merecia. Ele não estava meramente sofrendo a morte de um mártir. Ele estava sofrendo uma morte vicária pelos pecadores, em que Ele teve de levar os tormentos deles.

A teoria sociniana nega que haja alguma necessidade de expiação por parte de Deus, e que o sentimento de pecado, culpa e condenação é tudo coisa da mente humana, e que tudo o que se precisa é que algo remova esse sentimento do homem. Assim, essa teoria nega que qualquer tipo de expiação tenha sido realizada pela morte de Cristo, e com isso essa teoria contraria todas as passagens das Escrituras que falam da morte de Cristo como propiciação, de Sua morte como sacrifício pelos pecados, de Seu sangue sendo oferecido no céu pelos pecados, etc. Sobre essa teoria, há muitas passagens das Escrituras que se referem aos sofrimentos e morte de Cristo, que ficam sem entendimento e que não podem ser explicadas.

Não só isso, mas essa teoria avança com um conceito errado de pecado, fazendo com que seja algo totalmente dentro da capacidade do homem de retificar, e o exemplo de Cristo dá a motivação devida. Assim, essa teoria tem também um conceito falso de salvação, tornando-a pouco melhor do que reabilitação por parte do homem, e ignora o ensino bíblico de que o homem é uma criatura caída e depravada, totalmente incapaz de fazer algum bem espiritual até que ele tenha nascido de novo, e se tornado uma nova criatura em Cristo.

Outro conceito errado que vem envolvido nessa teoria é a idéia de que pode-se exercer a benevolência de Deus para com o homem em perdoá-lo sem que se faça qualquer coisa para satisfazer Sua justiça prejudicada. Se, como sustenta essa teoria, Deus podia, por uma simples ordem, declarar o homem perdoado sem a realização de uma expiação pelos pecados do homem, então Deus estaria contradizendo Seus próprios princípios justos, e seria culpado de pecado, e assim, toda moralidade no universo seria derrubada.

Numa palavra, essa teoria não é uma explicação da expiação; é uma explicação que se desfaz a própria expiação; virtualmente nega que haja alguma coisa tal como expiação. Essa teoria sofreu várias modificações, algumas não tão radicais quanto outras, mas o melhor que se pode dizer de qualquer delas é que são inadequadas e não bíblicas.

IV. A TEORIA GOVERNAMENTAL DA EXPIAÇÃO.

Essa teoria foi proposta no começo do século dezessete por Hugo Grotius (1583 1645) em oposição à teoria sociniana. Grotius, ao professar defender a teoria Anselmica contra Sócino, realmente modificou de tal maneira a teoria Anselmica a ponto de produzir uma terceira teoria da expiação. E. G. Robinson explica essa teoria da seguinte forma:

Conforme Grotius declarou, essa teoria começou com a concepção fundamental de Deus como Governante Soberano; como Soberano, Ele poderia impor o cumprimento, ou, se por razões boas e suficientes que ele escolhesse, ele poderia relaxar as penalidades de suas leis; mas a estabilidade de seu governo, e o bem-estar dos que são governados exigem que suas leis, se violadas, sejam defendidas e algum tipo de penalidade imposta, embora não necessariamente imposta nos próprios transgressores; como Governante Soberano, Ele tem o direito, em vista de um exemplo penal suficiente, de inocentar e perdoar os culpados. Grotius considerava os sofrimentos de Cristo, não como satisfação real, ou como um equivalente exato pelos pecados dos redimidos, mas como um equivalente aceito ou prático, por causa do qual se poderia com segurança perdoar a penalidade. — Christian Theology (Teologia Cristã), p. 279. Press of E. R. Andrews, Rochester, 1894.

Muitas pessoas e grupos diferentes, inclusive Jonathan Edwards, C. G. Finney, os teólogos Wesleyanos, Al¬bert Barnes, e até mesmo o batista Andrew Fuller, aceitaram essa teoria em formas modificadas. Quem a disseminou geralmente nos EUA foram as escolas de teologia da Nova Inglaterra.

É verdade que o pecado foi e é uma revolta contra o governo de Deus, mas a expiação de Cristo foi muito mais do que o mero resgate do governo de Deus dos ataques do homem pecador. Essa teoria, como a anterior, também ignora o fato de que o pecado é principalmente uma violação da santidade de Deus, e assim uma expiação que é aceitável a Deus tem de levar em consideração e ter harmonia com a santidade de Deus. Essa teoria ignora o fato de que o governo de Deus se baseia em Sua justiça, e uma expiação que satisfará Seu governo tem de ser uma expiação que também satisfará Sua justiça, e assim tem de estar de acordo com os princípios do direito que Ele estabeleceu.

Se, conforme sustenta essa teoria, Deus o Pai poderia relaxar as penalidades de Suas leis, e poderia aceitar uma satisfação menor do que a satisfação que era de fato exigida, sem trazer prejuízo à Sua própria santidade, então até o sangue de touros e bodes teria tido tanto valor diante dEle quanto o sangue de Cristo, se Ele tivesse escolhido aceitá-lo por expiação. Mas isso significaria que Cristo morreu em vão, e que Hebreus 10:4 não é verdade. Tal perspectiva então abriria o caminho para uma perspectiva ainda mais fraca da satisfação pelos pecados do homem; pois se Deus pudesse realmente chegar a relaxar as penalidades de Suas leis, Ele poderia relaxá-las de modo completo, até que alguma obra do homem fosse suficiente para uma expiação, ou nenhuma obra seria adequada. Logo que alguém começa a reduzir gradualmente as exigências da justiça absoluta, não haverá parada.

Grotius sustentava que Deus é um Ser infinitamente benevolente, cuja criação e governo do mundo são determinados pelo bem-estar mais elevado de Suas criaturas. Portanto, a expiação teve aplicação apenas à reconciliação do homem com Deus; assim, como a teoria sociniana, ignora todas as Escrituras que falam da necessidade de uma propiciação por parte de Deus. Cristo não só reconciliou o homem com Deus, mas Ele também reconciliou Deus com o homem, pois o Deus infinitamente santo não poderia se reconciliar com o homem até que se fizesse uma satisfação pelo pecado do homem, e se retificasse a desonra feita à justiça divina. Deus não pode fazer de conta que não vê o pecado nas pessoas.

Com seu ato de desobediência no Éden o homem invadiu o direito de soberania de Deus, rejeitando Sua autoridade, livrando-se do jugo da submissão, determinando ser seu próprio senhor. Não somos deixados para imaginar o resultado de tal revolta… O pecado fez uma brecha entre aquele que o cometeu e O Santo. Não só o pecado conduziu o homem a uma distância culpada de Deus, mas o pecado necessariamente colocou Deus numa distância santa do homem. Deus não permitirá que aqueles que são hostis a Ele e ofensivos à Sua pureza absoluta habitem em Sua presença. — A. W. Pink, The Doctrine of Reconciliation (A Doutrina da Reconciliação), p. 18. Associated Publish¬ers And Authors, Grand Rapids, 1971.

Essa reconciliação de Deus com o homem é uma parte necessária da expiação, mas esse aspecto é completamente ausente na teoria governamental, que faz com que seja inadequada em sua perspectiva desse grande assunto. Como as outras teorias, essa contém alguns elementos importantes de verdade, mas omite alguns importantes elementos também. Portanto, não consegue chegar até a verdade.

V. A TEORIA DA DEPRAVAÇÃO GRADUALMENTE EXTIRPADA.

Quem elaborou essa teoria foi Edward Irving (1792 1834) de Londres, e daí às vezes se chama a Teoria Irvingiana, e desde então alguns teólogos alemães a sustentam. Antes de Irving quem sustentava essa teoria era o teólogo espanhol Felix de Urgella. A. H. Strong explica essa teoria da seguinte forma:

Essa teoria sustenta que, em sua encarnação, Cristo assumiu a natureza humana conforme estava em Adão, não antes da Queda, mas depois da Queda — a natureza humana, pois, com sua corrupção e predisposição inata ao mal moral; que apesar de possuir essa natureza contaminada e depravada, Cristo mediante o poder do Espírito Santo, ou sua natureza divina, não só impedia sua natureza humana de se manifestar em qualquer pecado real e pessoal, mas gradualmente a purificou mediante lutas e sofrimentos, até que em sua morte ele extirpou completamente sua depravação original, e a uniu de novo a Deus. Essa purificação subjetiva da natureza humana na pessoa de Jesus Cristo constitui sua expiação, e os homens são salvos não mediante alguma propiciação objetiva, mas apenas quando se tornam participantes da nova humanidade de Cristo. Systematic Theology (Teologia Sistemática), p. 744. Fleming H. Revell. 1954.

Essa teoria nunca ganhou a popularidade que algumas das outras teorias gozavam, e assim quase não se ouve falar dela. Pelo fato de que sustentava essa teoria, Irving foi deposto do ministério da Igreja Nacional da Escócia sob a acusação de heresia, e subseqüentemente iniciou a “Santa Igreja Católica Apostólica”.

Os seguidores posteriores de Irving suavizaram ou removeram completamente as características mais desagradáveis dessa teoria, mas seus escritos revelam que ele próprio sustentava que Cristo em Sua encarnação tomou sobre si uma natureza humana que era realmente pecadora, e que essa natureza humana pecadora só foi finalmente purificada de sua pecaminosidade na morte. Ele freqüentemente citava Hebreus 2:10: “…consagrasse pelas aflições o príncipe da salvação deles” como uma prova disso.

É difícil entender como Irving podia sustentar sistematicamente que Cristo era “o Santo” (Lucas 1:35), mas simultaneamente possuía uma natureza humana que era tão caída e corrupta quanto qualquer outra. Contudo, era exatamente isso o que Irving sustentava. Ele disse:

Sustentarei até a morte que a carne de Cristo era tão rebelde quanto a nossa, tão caída quanto a nossa… A natureza humana era completamente corrupta e negra como o inferno, e essa é a natureza humana que o Filho de Deus tomou sobre si e com a qual se vestiu. (Citado por A. H. Strong, Systematic Theology (Teologia Sistemática), p. 746. Fleming H. Revell, 1954.)

Essa teoria erra em sua perspectiva da encarnação de Cristo, pois sustenta que Ele tinha uma natureza pecadora, algo que as Escrituras negam; errou em sua perspectiva acerca do pecado, já que sustentava que o pecado poderia ser inocente ou culpado, e essa perspectiva errada acerca do pecado naturalmente afetava a perspectiva que essa teoria tinha acerca da obra expiatória de Cristo. Essa teoria vê a expiação mais como um processo do que como ato salvador realizado em favor dos homens; e sustentava que os resultados salvadores da morte de Cristo se tornaram do homem por associação com Cristo, em vez de por imputação, conforme mostram as Escrituras.

VI. A INFLUÊNCIA MORAL DA EXPIAÇÃO.

Essa teoria se chama às vezes a teoria bushnelliana pelo fato de que Horace Bushnell (1802-1876) a advogava nos Estados Unidos. Muitos consideram essa teoria apenas como uma forma da teoria sociniana, e até certo ponto isso é verdade, mas ela tem vários elementos que lhe são peculiares. E. Y. Mullins descreve essa teoria da seguinte forma:

Essa teoria veio a se tornar uma das teorias modernas mais populares e muitos pregadores e teólogos importantes a vêm sustentando. Sua característica central é sua afirmação de que na obra expiatória de Cristo não se supriu nenhuma necessidade da natureza divina. O objetivo da expiação foi em vez disso influenciar os homens a se arrepender. Deus já estava reconciliado. A expiação foi a expressão do amor e simpatia de Deus pelos homens pecadores. A encarnação uniu Cristo à raça humana pecadora, e sua morte foi o resultado de seus esforços compassivos em prol da salvação deles. Não havia obstáculo ao perdão em Deus. O único obstáculo era a própria descrença e teimosia do homem. Seu efeito é mover os homens ao arrependimento e obediência por amor. — The Christian Religion In Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Sua Expressão Doutrinária), p. 308. Judson Press, Philadelphia, 1932.

Essa teoria, como a dos socianianos, sustenta que a morte de Cristo não propiciou nenhum princípio da natureza divina que; mas que essa morte é uma manifestação do amor de Deus, sofrendo em e com os pecados de suas criaturas. A expiação de Cristo, pois, é as conseqüências meramente naturais de sua atitude de assumir a natureza humana; e é um sofrimento, não de penalidade no lugar do homem, mas das desgraças e tristezas combinadas que envolvem a vida de um ser humano. Essa expiação tem efeito não para satisfazer a justiça divina, mas tanto para revelar o amor divino quanto para suavizar os corações humanos e levá-los ao arrependimento; em outras palavras, os sofrimentos de Cristo eram necessários, não a fim de remover um obstáculo ao perdão dos pecadores que existe na mente de Deus, mas a fim de convencer os pecadores de que não existe tal obstáculo. — A. H. Strong, Systematic Theology (Teologia Sistemática), p. 733. Fleming H. Revell, 1954.

Pelo fato de que rejeitou o caráter substitutivo e propiciatório da morte de Cristo, essa teoria encontrou especial acolhida entre os unitaristas e os modernistas de hoje. Não só isso, mas às vezes veremos até trinitaristas que, movidos mais por sentimento do que pelas Escrituras, também sustentam essa teoria. Não dá para negar que a morte de Cristo tem de fato uma influência moral nos homens, mas essa influência não representa a totalidade, nem mesmo a parte principal, da obra redentiva que Cristo realizou na cruz. Esse exemplo mostra o que dissemos no começo desta seção, isto é, que todas essas perspectivas erradas acerca da expiação têm alguma verdade nelas.

Essa teoria avança com uma perspectiva errada acerca do caráter de Deus, pois presume que Ele não fica ofendido com o pecado, e que Ele não guarda os pecados a fim de usá-los mais tarde contra o pecador, porém já perdoou todos os pecados. Mas isso é negar que Deus é um Deus justo e santo, pois se Ele pode ignorar o pecado sem que se faça pelo pecado um sacrifício adequado, então Ele não tem nenhuma preocupação real com direito ou santidade, e assim é despido de Seu caráter santo. Sua justiça, bem como Seu amor, tornaram a expiação necessária.

De novo, essa teoria erra em que sustenta que Cristo sofre com o homem em vez de sofrer no lugar dele. Assim, embora alguns defensores dessa teoria afirmem crer na morte “vicária” (substitutiva) de Cristo, porém a perspectiva deles nega a natureza vicária da morte de Cristo. Cristo tomou nosso lugar e sofreu nossa maldição para que não tivéssemos de sofrer o que por justiça merecíamos. Lemos em muitos lugares de Cristo sofrendo e morrendo “por” nós, e a palavra grega assim traduzida, como nossa palavra portuguesa “por”, fala de substituição, bem como de benefício. Ele se tornou um criminoso para que fôssemos perdoados e nos tornássemos filhos de Deus; Ele sofreu para que fôssemos abençoados; Ele morreu para que pudéssemos viver.

Essa teoria erra em que faz da morte de Cristo pouco mais do que mero drama subjetivo com pouca finalidade objetiva em vista. Sustentando que sua obra é principalmente de influência moral no pecador, nega, ou pelo menos ignora, o aspecto propiciatório e reconciliatório no que se refere a Deus o Pai. Essa teoria lida com a maioria dos aspectos da expiação de um modo abstrato que praticamente invalida a realidade da expiação.

Como algumas das outras teorias, essa teoria é variada, de acordo com seus diferentes defensores, e é por isso que às vezes é confundida com a teoria sociniana — as variações das duas muitas vezes se sobrepõem. F. W. Robertson, F. D. Maurice, McLeod Campbell, John Young, Schleiermacher, Ritschl e outros sustentaram essa teoria.

VII. A TEORIA ÉTICA DA EXPIAÇÃO.

A. H. Strong, um dos principais defensores dessa teoria, diz acerca dela:

Ao propor o que pensamos ser a verdadeira teoria da expiação, parece desejável dividir nosso tratamento em duas partes. Uma teoria só pode ser satisfatória quando fornece uma solução para os dois problemas. 1. O que a expiação efetuou? Ou, em outras palavras, qual foi o objetivo da morte de Cristo? A resposta a essa pergunta tem de descrever a expiação em sua relação com a santidade em Deus. 2. Quais foram os meios usados? Ou, em outras palavras, como Cristo poderia com justiça morrer? A resposta a essa pergunta tem de descrever a expiação como surgindo da relação de Cristo com a humanidade. Pegamos essas duas partes do assunto em ordem:

Em primeiro lugar — a expiação em sua relação com a santidade de Deus.

A teoria ética sustenta que a necessidade da expiação se baseia na santidade de Deus, da qual a consciência do homem é um reflexo finito. Há um princípio ético na natureza divina, que exige que o pecado será castigado. Com exceção de seus resultados, o pecado essencialmente merece males…

Em segundo lugar — a expiação em sua relação com a humanidade de Cristo.

A teoria ética da expiação sustenta que Cristo permanece em tal relação com a humanidade que o que a santidade de Deus exige Cristo está sob a obrigação de pagar, anseia pagar, inevitavelmente paga, e paga de modo tão total, em virtude de sua natureza dupla, que se satisfaz toda exigência de justiça, e o pecador que aceita o que Cristo fez em seu favor é salvo. — Systematic Theology (Teologia Sistemática), pp. 750-751, 754. Fleming H. Revell, 1954.

Essa teoria se baseia no fato da união de Cristo com a natureza humana que O obrigou a sofrer pelos homens, mas isso não significa que Cristo foi pessoalmente um pecador; isso a teoria ética não ensina. Sustenta de fato que Ele tem a obrigação legal e moral (daí o nome “ético”) de sofrer pelos homens por causa de Sua unidade com eles, mas isso foi também uma união voluntária com o homem por parte de Cristo, e Ele teve prazer em entrar para a raça humana nesse caráter e para esse propósito; Ele teve prazer de sofrer e morrer, por amor ao homem e por amor a Deus.

Mas com facilidade se entende de modo errado que esse aspecto obrigatória do sofrimento de Cristo envolve culpa pessoal por parte de Cristo, o que não é de modo algum o sentido, e não dá para se sustentar coerentemente essa posição. Mullins bem diz:

Comumente as palavras penal e penalidade se referem à culpa pessoal. Cristo não pecou pessoalmente. Daí ele não poderia ter sofrido uma penalidade no sentido normal. Mas ele sofreu as conseqüências do pecado da raça humana por causa de sua completa identificação com ela. A morte é a penalidade do pecado. Cristo morreu. Ele morreu nas mãos de homens pecadores, enquanto se deu livremente para livrá-los do poder do princípio do pecado-morte que operava neles… Em sua morte expiatória, pois, não devemos imaginar a ira de Deus caindo sobre a cabeça de Cristo, dirigindo-se contra ele como um pecador pessoal. Cristo sofreu a ira de Deus apenas no sentido de que ele permitiu que o princípio de pecado-morte operasse nele. A ira já estava agindo contra os homens pecadores. Cristo a sofreu porque ele entrou na condição do homem pecador e sofreu a morte que expressa a ira de Deus e a penalidade pelos pecados deles. — The Christian Religion In Its Doctrinal Expression (A Religião Cristã em Sua Expressão Doutrinária), p. 323. Judson Press, Philadelphia, 1932.

Não vemos nenhum erro positivo nessa teoria da expiação, e ela contém algumas verdades importantes que faltam em algumas das teorias anteriores. Se há falha nessa teoria, está não no destaque do aspecto comercial da expiação ao ponto em que fazem as Escrituras. Vê-se a importância do aspecto comercial da expiação na freqüência em que aparecem as palavras “redimir”, “redenção”, “resgate”, etc., todas das quais indicam o aspecto comercial.

A teoria ética é certamente um aspecto importante da expiação, pois revela a necessidade da expiação; mas o aspecto comercial é igualmente importante, na medida em que dá os meios para realizar a expiação, de modo que não dê para eliminar nenhum desses sem se perder a verdade plena da doutrina.

Portanto, é claro que todas as teorias anteriores — até mesmo aquelas que mais se distanciam da verdade — têm alguns elementos de verdade nelas, e uma perspectiva correta e abrangente da expiação tem de incluir tudo acerca da verdade. Temos de reconhecer com a teoria Patriarcal que a expiação envolve um resgate pago, pelo qual os homens são libertos. Contudo, o resgate não foi pago para Satanás. Temos de concordar com a teoria Anselmica que pela expiação uma satisfação foi prestada a Deus pela desonra que o pecado Lhe havia feito. Temos de concordar com a teoria sociniana que a morte de Jesus é um exemplo poderoso de devoção à verdade de Deus, mas temos de ver na verdade muito mais do que isso. Com a teoria grotiana, temos de concordar que a expiação foi uma manifestação do governo soberano de Deus na substituição de Cristo pelo pecador culpado, mas de novo, esse não é o único nem o ponto principal da expiação. Com a teoria Irvingiana temos de concordar que Cristo, ao tomar sobre Si a natureza humana, purificou aquela parte da humanidade pela qual se fez expiação, e no final os apresentará diante de Deus em pureza imaculada. Com a teoria bushnelliana temos de concordar que a expiação na verdade representa uma grande influência moral nos homens, mas temos de reconhecer que isso é uma conseqüência relativamente secundária, em vez de seu propósito principal. Com a teoria ética, temos de concordar que a expiação se baseia na santidade de Deus e na unidade de Cristo com a raça humana.

Assim, há elementos de verdade em todas as teorias, mas há também erros, ou pelo menos também omissões na maioria delas, de modo que é necessária uma perspectiva misturada, para se chegar à verdade inteira. Sempre se perverteu a verdade, começando no jardim do Éden, e em nada isso é mais verdadeiro do que com relação à expiação; daí, cabe-nos considerar diligentemente essa grande doutrina, para que não nos desviemos da verdade pela astúcia maliciosa de homens que sustentam perspectivas fracas de Cristo e Sua obra redentiva.

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