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Adoração: com corações, mentes e vozes

É evidente que a música cristã moderna, via de regra, é bem inferior aos hinos clássicos que eram escritos 200 anos atrás. Isto não é uma reclamação do estilo no qual as músicas são escritas, na maioria das vezes. Ao invés, as letras são o que revelam mais nitidamente quão feio nossos padrões caíram.

Os hinos eram ferramentas didáticas maravilhosas, cheias da Palavra e de doutrina sólida, um meio de ensinar e admoestar uns aos outros, como nos é ordenado em Colossenses 3.16 [A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração.]. Mais de cem anos atrás, a música de igreja tomou uma direção diferente, e seu foco se tornou mais subjetivo. As músicas enfatizaram a experiência pessoal e os sentimentos do adorador.

Os músicos modernos têm promovido essa tendência ainda mais e freqüentemente vêem a música como não mais do que um instrumento para estimular emoções intensas. O papel didático ordenado pela Bíblia é simplesmente esquecido.

O efeito é previsível. O que semeamos por várias gerações estamos colhendo agora em abundância assustadora. A igreja moderna, alimentada por letras insípidas, tem pouco apetite pela Palavra e doutrina sólida.

Nós também corremos o perigo de perder a rica herança da hinódia visto que alguns dos melhores hinos da nossa fé caem na negligência, sendo trocados por letras banais dentro de melodiazinhas que não saem da cabeça. É uma crise, e a igreja está sofrendo espiritualmente. Tanto pastores quanto músicos devem ver a gravidade da crise e trabalhar diligentemente para uma reforma.

Recentemente, colaborei em um livro a respeito de alguns dos maiores hinos da fé cristã. [1] Minha tarefa no projeto era escrever uma sinopse doutrinária de cada hino selecionado. Este exercício foi fascinante e iluminador, fazendo-me imergir na rica herança da hinologia cristã.

Na minha pesquisa, chamou-me a atenção o fato de que uma profunda mudança aconteceu na música da igreja perto do fim do século XIX. A composição de hinos praticamente parou e foi trocada pelas “músicas gospel” – músicas geralmente mais leves no conteúdo doutrinário, com estribilhos curtos seguidos de um refrão, um coro ou uma linha lírica comum no final repetida após cada estribilho. As músicas gospel, de maneira geral, eram mais evangelísticas que os hinos. A diferença principal era que a maioria das músicas gospel eram expressões de testemunho pessoal visando a uma audiência formada de pessoas, enquanto a maioria dos hinos clássicos eram músicas de louvor dirigidas diretamente a Deus.

CÂNTICO NOVO

O estilo e a forma da música gospel pegaram emprestados diretamente dos estilos musicais populares do final do século XIX. O homem geralmente considerado o pai da música gospel é Ira Sankey, um cantor e compositor dotado que galgou fama agarrado em D. L Moody. Sankey era o solista e líder de música para as campanhas evangelísticas de Moody na América do Norte e Inglaterra.

Sankey queria uma música que fosse mais simples, mais popular e que se prestasse mais para o evangelismo que para os hinos clássicos. Então ele escreveu músicas gospel – na maioria mais curtas, cantigas simples com refrãos, no estilo das músicas populares da sua época. Sankey cantava cada verso como um solo e a congregação juntava-se a ele em cada refrão. Embora a música de Sankey tenha provocado alguma controvérsia no início, logo a forma pegou no mundo inteiro. Já no início do século XX a maioria das novas obras eram músicas gospel no gênero que o Sankey inventou.

Devemos lembrar que na maioria dos hinários ainda hoje, o único hino bem conhecido com marca registrada depois de 1940 é “Quão Grande És Tu” (How Great Thou Art) [2]. Classificar esta obra como um hino do século XX é forçar a barra um pouco. Inclui um refrão, que é mais característico de músicas gospel do que hinos. E ainda, não é bem uma obra do século XX na verdade. As primeiras três estrofes foram originalmente escritas em 1886 por um pastor Sueco bem conhecido, Carl Boberg, e traduzido do Sueco para o Inglês pelo missionário inglês Stuart Hine logo antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. O Hino incluiu um quarto estribilho, que é o único verso na versão popular em Inglês que foi escrito no século XX na verdade. [3]

Em outras palavras, por mais de 70 anos, praticamente nenhum hino foi adicionado ao repertório popular da música cristã congregacional. Poucos hinos verdadeiros de qualidade durável estão sendo compostos.

Meus comentários não são de forma nenhuma um criticismo cego das músicas gospel. Várias músicas gospel conhecidas são expressões ricas e maravilhosas da fé. Embora a música mais conhecida de Ira Sankey, “The Ninety and Nine” [NT: Os Noventa e Nove] praticamente não seja mais cantada como uma música congregacional hoje, foi o hit da era Sankey. Ele improvisou a música ao vivo em um dos grandes encontros de Moody em Edinburgh, usando as palavras de um poema que ele havia recortado mais cedo, de tarde, de um jornal de Glasgow. Essa letra, escrita por Elizabeth Clephane, são uma adaptação da parábola da ovelha perdida de Lucas 15.4-7.

Uma música favorita que durou mais tempo da época áurea das música gospel é “Grace Greater than Our Sin” [5] A música celebra o triunfo da graça sobre o pecado. Seu refrão é familiar:

Graça, graça,
Fonte de paz, de perdão e amor
Graça, graça,
Graça de Deus para o pecador

Músicas como essas enriqueceram as expressões de fé da igreja.

Na maioria das vezes, no entanto, o crescimento da música gospel no canto comunitário marcou uma diminuição de ênfase na verdade doutrinária objetiva e um aumento da experiência subjetiva. A mudança de foco afetou claramente o conteúdo das músicas. Devemos notar que algumas das músicas gospel originais são tão insípidas e vazias quanto qualquer coisa que os opositores da presente geração de música cristã contemporânea jamais poderiam reclamar legitimamente.

De fato, os críticos tradicionalistas que atacam a música contemporânea somente porque é contemporânea no estilo – especialmente aqueles que pensam que a música antiga sempre é melhor – precisam repensar o assunto. A preocupação que levanto tem a ver com conteúdo, não estilo somente. Considerando só as letras, algumas das músicas de estilo antigo mais populares são até mais ofensivas do que coisas modernas. Não conheço uma música contemporânea que é mais banal do que a velha amada “No jardim” (In the Garden):

Andando a sós no jardim,
quando o orvalho ainda brinca nas rosas,
Tua voz Senhor,
murmurando a mim,
És fonte de todos amores

E ele anda comigo, e ele fala comigo,
E ele me diz que sou dele;
E a alegria que partilhamos enquanto
permanecemos ali
Ninguém jamais conheceu.

Ele fala e o som de sua voz
É tão doce que os passarinhos diminuem seu
cantar,
E a melodia
que ele deu-me
Retine no meu coração

Eu ficaria no jardim com ele
Ainda que a noite caia
Mas ele se despede de mim
No meio da voz de lamento
Sua voz me chama

A letra não fala nada de substância real, e o que elas falam realmente não é particularmente cristão. É uma pequena rima sentimentalista sobre a experiência e sentimentos pessoais de alguém. Enquanto os hinos clássicos procuravam glorificar a Deus, as músicas gospel como “No Jardim” glorificavam sentimentalismo puro e simples.

Várias músicas gospel sofrem desses fraquezas. De fato, várias das músicas favoritas “ao estilo antigo” são praticamente isentas de qualquer substância cristã verdadeira e são carregadas de sentimentalismo barato. “Jesus me transformou” (Love Lifted Me), “Vem, Senhor, Me Guiar” (Take My Hand, Precious Lord), “Brando qual coro celeste” (Whispering Hope) e “Não é segredo o que Deus faz” (It Is No Secret What God Can Do) são exemplos conhecidos.

Obviamente, nem quão antiga nem quão popular é uma música gospel é uma boa medida de valor. O fato de uma música gospel ser “ao estilo antigo” com certeza não é uma garantia de adequação para a edificação da igreja. Quando falamos de música eclesiástica, ser mais antiga não é ser necessariamente melhor. Na verdade, essas mesmas músicas gospel, tão freqüentemente exaltadas pelos críticos da música moderna, são as que prepararam o caminho para as próprias tendências que esses críticos algumas vezes desaprovam com razão.

Não estou dando a entender que a música que Sankey introduziu não tem um papel legítimo. As músicas gospel têm desempenhado um papel evangelístico e de testemunho efetivo e, portanto,merecem um lugar proeminente na música eclesiástica. Mas foi uma infelicidade para a igreja que pelo início do século XIX, eram escritas praticamente só músicas gospel. Os músicos das igrejas no final do século XIX (assim como os teólogos da época) estavam apaixonados demais com qualquer coisa “moderna”. Eles abraçaram o novo estilo de música congregacional com agressividade desenfreada. Infelizmente, já no século XX, a música gospel se alastrou e desbancou os hinos clássicos. Então, o movimento que Sankey começou praticamente acabou com a rica tradição da hinologia cristã que brotava desde a época de Martinho Lutero (1483-1546) e mesmo bem antes.

Antes de Sankey, os compositores de hinos mais conhecidos eram pastores e teólogos – homens hábeis no manejo da Escrituras e da sólida doutrina. Com a mudança para as músicas gospel, quase que todo mundo com uma caída por poesia se sentiu capaz de escrever música eclesiástica. Afinal de contas, a música nova devia ser sobre testemunho pessoal, nada de tratado doutrinário rebuscado.

Antes de Sankey, os hinos eram propositadamente compostos com um propósito didático. Eram escritos para ensinar e reforçar conceitos bíblicos e doutrinários no contexto do louvor direcionado a Deus. Esses hinos visavam à adoração a Deus proclamando sua verdade de uma maneira que aumentava a compreensão da verdade pelo adorador. Eles criaram um padrão de adoração que era tão racional quanto emocional. E isso era perfeitamente bíblico. Afinal de contas, o primeiro e maior mandamento nos ensina a amar a Deus do todo o nosso coração, alma e mente (Mat 22.37). Nunca teria passado na cabeça dos nossos ancestrais espirituais que o louvor era algo feito com o intelecto subjugado. A adoração que Deus procura é a adoração em espírito e em verdade (João 4.23,24).

Hoje em dia a adoração é freqüentemente caracterizada como algo que acontece bem longe do domínio do nosso intelecto. Essa noção destrutiva têm criado vários movimentos perigosos na igreja contemporânea. Talvez tenha chegado ao ápice no fenômeno conhecido como a Bênção de Toronto, onde risos irracionais e outras emoções selvagens eram considerados a mais pura forma de adoração e uma prova visível da bênção divina. Essa noção moderna de adoração como um exercício irracional tem causado muito prejuízo às igrejas, implicando em um declínio na ênfase na pregação e ensino e uma interessante ênfase em entreter a congregação e fazer as pessoas se sentirem bem. Tudo isso deixa o crente no banco da igreja destreinado e incapaz de discernir, e muitas vezes jubilantemente ignorante dos perigos ao redor dele ou dela.

A ERA DOS CÂNTICOS DE LOUVOR

No final do século XX, aconteceu uma outra grande mudança. Uma nova forma sucedeu às músicas gospel: os cânticos de louvor. Os cânticos de louvor consistem de versos em músicas fáceis, geralmente mais curtas do que as músicas gospel e com menos estribilhos.

Os cânticos de louvor, assim como os hinos, são geralmente músicas de louvor direcionadas a Deus. Com essa recente mudança voltou-se à pura adoração (ao invés de testemunho e evangelismo).

Ao contrário dos hinos, contudo, os corinhos geralmente não têm nenhum propósito didático. Os cânticos de louvor são feitos para serem cantados como uma simples expressão pessoal de louvor, enquanto hinos são geralmente expressões coletivas de louvor com uma ênfase em alguma verdade doutrinária [9]. Um hino geralmente tem várias estrofes, cada qual construindo ou expandindo o tema introduzido na primeira estrofe [10]. Pelo contrário, um cântico de louvor é geralmente mais curto, com um ou dois versos, e a maioria desses cânticos deliberadamente faz repetições para prolongar o enfoque numa única idéia ou expressão de louvor. (Obviamente, essas não são distinções absolutas. Alguns corinhos contêm instruções doutrinárias e alguns hinos têm o objetivo de serem maravilhosas expressões de louvor [11])

Certamente não há nada de errado com o louvor simples e diretamente pessoal que caracteriza os melhores cânticos de hoje. Também não há nada de errado com a campanha evangelística e de testemunho das músicas gospel de ontem. É uma profunda tragédia, no entanto, que em alguns círculos, apenas cânticos contemporâneos sejam cantados. Outras congregações limitam seus repertórios a músicas gospel [retrocedendo, no máximo,] de até cem anos atrás. Enquanto isso, um grande e rico conjunto da hinologia clássica cristã corre o risco de ser irreparavelmente extinto por pura negligência. [12]

SALMOS, HINOS E CÂNTICOS ESPIRITUAIS
A perspectiva bíblica para música cristã se encontra em Colossenses 3.16: “A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao Senhor com graça em vosso coração.” Este verso simplesmente pede por uma variedade de formas musicais – “salmos, hinos e cânticos espirituais.” Sobre o significado dessas expressões, Charles Hodge escreveu: “Os primeiros usos das palavras psalmos, humnos e ode parecem ter sido tão livres quanto os termos correspondentes em Inglês o são conosco, salmo, hino e cântico. Um salmo era um hino e um hino era um cântico. Ainda, havia uma distinção entre eles.” [13]

Um salmo falava de uma música sagrada escrita para acompanhamento com instrumento musical. (Psalmos é derivado de uma palavra que quer dizer tanger cordas com os dedos.) A palavra era usada para referir a salmos do Antigo Testamento (Atos 1.20; 13.33), bem como canções cristãs (I Cor 14.26) [14]. Um hino falava de uma música de louvor a Deus, um paion [hino alegre e exultante de louvor, tributo, ação de graças ou triunfo] religioso. Um cântico, porém, podia ser música tanto sagrada quanto secular. Então o apóstolo especifica: “canções espirituais“.

As distinções entre os termos são um tanto nebulosas, e como Hodge indicou, a nebulosidade se reflete mesmo no nosso uso moderno dessas palavras. Não obstante, determinar as reais formas dos “salmos, hinos e canções sagradas” não é essencial. De outra forma, as Escrituras teriam registrado essas distinções para nós.

A grande importância da expressão “salmos, hinos e cânticos espirituais” parece ser a seguinte: Paulo estava pedindo uma variedade de formas musicais e uma variada gama de expressões espirituais que não podem ser incorporadas em qualquer uma forma musical. A opinião apenas de salmos (que vem ganhando popularidade em alguns círculos reformados hoje) não permite essa variedade. As opiniões dos fundamentalistas/tradicionalistas, que parecem querer limitar a música eclesiástica às formas de músicas gospel do início do século XX, também silenciariam a variedade que Paulo pediu. Mais importante, a corrente reinante nas igrejas evangélicas modernas, onde as pessoas parecem querer se empanturrar de nada além de simplistas cânticos de louvor, também destrói o princípio de variedade que Paulo determinou.

Acredito que a comunidade evangélica protestante errou cem anos atrás quando a composição de hinos foi quase que completamente abandonada dando lugar [exclusivo] à música gospel. Os compositores crentes hoje estão cometendo um engano similar ao não comporem hinos substanciais enquanto removem os antigos hinos do repertório musical de nossas congregações e os trocam com corinhos triviais e músicas pop parecidas.

ENSINANDO-VOS E ADMOESTANDO-VOS UNS AOS OUTROS

Os compositores de cânticos de louvor e outras músicas modernas de igreja muitas vezes esquecem do papel didático biblicamente ordenado da música eclesiástica. A maioria dos cânticos de louvor são escritos para atiçar apenas as emoções. São cantados na grande maioria das vezes como um mantra místico, com o propósito deliberado de pôr o intelecto em um estado passivo enquanto o adorador assimila o máximo de emoção possível. O paradigma de adoração Vineyard foi praticamente construído sobre esse princípio e igrejas ao redor do mundo adotaram esse modelo.

“A música… se limita exclusivamente a cânticos de louvor, com letras projetadas [por um retroprojetor ou um datashow] ao invés de cantadas dos hinários, de forma que o adorador tenha total liberdade de reagir fisicamente. Cada cântico de louvor se repete várias vezes e o único sinal de que estamos indo para o próximo cântico é quando a transparência muda. Não há anúncio ou comentários falados entre as músicas. De fato, não há um líder de louvor, para que o cantar tenha um sentimento de espontaneidade.
A música começa devagar e calma e vai progredindo gradual e constantemente num crescendo de 45 minutos. Cada cântico que sucede tem uma carga emocional mais forte que a anterior. Ao longo de 45 minutos, a força emocional da música aumenta a passos quase imperceptíveis desde calma e serena até uma intensidade forte e impulsiva. No começo todos estão sentados. À medida que o sentimento de fervor aumenta, as pessoas reagem quase que instintivamente, primeiro levantando as mãos, depois se levantando, depois se ajoelhando ou caindo prostrados no chão. Ao fim do momento de louvor metade da congregação está no chão, vários estirados com a face voltada para o chão e se torcendo de emoção. A música foi cuidadosa e propositadamente levada para esse intenso ápice emocional…
Ainda assim, em meio a isso tudo, não há uma ênfase no conteúdo das músicas. Cantamos sobre “sentir” a presença de Deus entre nós, como se nossas crescentes emoções fossem a principal maneira de confirmação da sua presença e de medida da força da sua visitação. Várias das músicas dizem ao Senhor que ele é grande e digno de louvor, mas nenhuma jamais diz realmente porque. Não importa. O objetivo, claramente, é atiçar nossas emoções, e não focalizar nossos pensamentos num aspecto particular da grandeza de Deus. Na verdade, depois, na pregação, o pastor nos diz para tomarmos cuidado [a fim de não] seguirmos nossas cabeças ao invés dos nossos corações em quaisquer assuntos nossos com Deus.
Em outras palavras, o louvor aqui é intencional e propositadamente anti-intelectual. E a música reflete isso. Ao passo que não há nada explicitamente errado com qualquer um dos cânticos que foram cantados, também não há nada de substância na maioria deles. São escritos para serem transmissores da paixão, porque a paixão, deliberadamente divorciada do intelecto, é o que define esse conceito de ‘louvor’.” [15]

Nem todos cultos contemporâneos vão tão longe, claro, mas as tendências mais populares estão indo nessa direção, com certeza. Qualquer coisa muito cerebral é automaticamente suspeita, considerada não ‘louvável’ o suficiente, porque claramente, a noção reinante de louvor não dá nenhum ou pouco lugar ao intelecto. É por isso que no culto típico as pregações estão sendo encurtadas e ficando mais light, e mais tempo é dado para a música. A pregação, que costumava ser o centro do culto de adoração, agora é vista como algo distinto da adoração. Algo que se intromete no “momento de louvor e adoração”, no qual o foco é música, testemunho e oração, mas principalmente música. E música cujo principal propósito é atiçar as emoções.

Se a função apropriada da música inclui “ensinar e admoestar”, então a música na igreja deve ser muito mais do que um estímulo emocional. Na verdade, isso significa que a música e a pregação devem ter o mesmo alvo. Ambas pertencem à proclamação da Palavra de Deus. O compositor deve, portanto, ser tão hábil nas Escrituras e tão preocupado com a precisão teológica quanto o pastor. E ainda mais, porque as músicas que ele ou ela escreve provavelmente serão cantadas vez após vez (ao contrário de uma pregação que é feita apenas uma vez).

Temo que esta perspectiva está totalmente perdida entre os músicos crentes comuns de hoje em dia. Como observou Leonard Payton, “O quadro é tão extremo agora que qualquer um que sabe meia dúzia de acordes num violão e consegue fazer rimas que nem cartões de lembranças é considerado qualificado para exercer esse componente do ministério da Palavra, independentemente do treinamento e exames teológicos.” [16] Payton afirma que os músicos líderes do Antigo Testamento – Hemã, Asafe e Etã (I Crônicas 15.19) – foram os primeiros dentre todos os sacerdotes levitas, homens que dedicaram suas vidas ao serviço do Senhor (v. 17), homens treinados nas Escrituras e hábeis no manejo da Palavra de Deus. Seus nomes estão registrados como autores de alguns dos salmos inspirados (Sal 73-83; 88.1; 89.1). Payton escreve:

“Foi Asafe que proclamou que Deus é dono ‘de ‘milhares de cabeças de gado nas montanhas’ (Salmos 50.10). Se um músico de uma igreja moderna tivesse escrito uma letra de louvor como o Salmo 50, ele provavelmente não conseguiria publicá-la na indústria de música cristã. E ele talvez estivesse bem perto de ser demitido da sua igreja. O Salmo 88 de Hemã é incontestavelmente o mais triste de todos os Salmos. Em suma, músicos levitas escreveram Salmos e esses Salmos não foram subjugados às exigências emocionais e gnósticas da música evangélica do século XX.” [17]

I Reis 4.31 escreve sobre Salomão: “E era ele ainda mais sábio do que todos os homens, e do que Etã, ezraíta, e Hemã, e Calcol, e Darda, filhos de Maol; e correu o seu nome por todas as nações em redor.” Payton indica a importância desta afirmação:

“Se Salomão não tivesse vivido, dois músicos teriam sido os homens mais sábios. Resumidamente, músicos eram professores da mais alta categoria. Isto me leva a pensar que os músicos levitas, tendo sido espalhados pela terra, serviram comoprofessores de Israel. Mais ainda, os Salmos eram seus livros-texto. E porque este livro-texto era um livro de canto, provavelmente os músicos levitas catequizaram a nação de Israel cantando os Salmos. [18] [ênfase no original]

Gostem ou não, compositores são professores também. Muitas das letras que escrevem serão muito mais enraizados profunda e permanentemente nas mentes dos crentes do que qualquer coisa que pastores ensinem do púlpito. Quantos compositores são hábeis o suficiente em teologia e nas Escrituras para se qualificarem para tal papel fundamental na catequese do nosso povo?

A pergunta é respondida pela falta de expressão achada nos cânticos de louvor mais populares – especialmente quando comparados a alguns dos hinos clássicos. Compare a letra de “Brilha Jesus” (Shine, Jesus, Shine) com “Adorem o Rei, glorioso Senhor” (O Worship the King, All Glorious Above). Ou comparem “Algo Belo” (Something Beautiful) com “Oh, Fronte Ensangüentada” (O Sacred Head Now Wounded). Escolho estes exemplos não porque vejo algo errado ou antibíblico nestes cânticos modernos em particular, mas porque eles são os melhores do gênero. Se o melhorque os compositores modernos conseguem fazer parece insípido comparado à música dos nossos ancestrais espirituais, talvez seja apropriado perguntar se a igreja de hoje é culpada coletivamente de amaldiçoar a Deus com nossos louvores fracos.

É difícil imaginar numa outra expressão de louvor mais deficiente para oferecer a Deus do que “Pai de amor gosto tanto de ti ” (Heavenly Father We Appreciate You). Mas “Meu Deus é um Grande Deus” (Our God is an Awesome God) chega perto. Em parte porque o adjetivo ‘awesome‘ [tremendo] foi pilhado pela presente geração tornando-o no elogio preferido para todas as ocasiões, usado em tudo deste manobras de skate até piercings. Na boca de um jovem “Our God is an Awesome God” é equivalente a cantar sobre como Deus é “massa”.

Ao menos “Meu Deus é um Grande Deus” faz uma rápida referência à “sabedoria, poder e amor” de Deus, dando razões bíblicas porquê ele é grande e digno de louvor. Neste aspecto é melhor do que o monte de cânticos modernos que expressam um louvor vago a Deus mas nunca se dão ao trabalho de mencionar o que há nele que o faz merecedor do nosso louvor (e é certamente melhor do que o outro tipo popular de cânticos, aqueles que se concentram quase que completamente nos sentimentos do adorador).

Agora leia a última estrofe de um hino clássico de louvor, “Deus Sábio, Invisível, Perfeito, Imortal” (Immortal, Invisible). Depois de detalhar uma substancial lista de atributos divinos, o letrista escreveu:

És Pai glorioso, és luz a brilhar
Teus anjos não podem teu rosto mirar
Mas nós entoamos aqui teu louvor
E as frontes curvamos, humildes, Senhor. [19]

Ambos a poesia e o sentido são superiores a quase que qualquer coisa escrita hoje.

Compositores modernos claramente precisam levar suas tarefas a sério. As igrejas também devem fazer tudo que puderem para cultivar músicos que sejam treinados no manuseio das Escrituras e capazes de discernir a doutrina sólida. Mais importante ainda, os pastores e anciãos devem acompanhar mais de perto e mais cuidadosamente os ministérios de música na igreja, conscientemente fixando um alto padrão para o conteúdo bíblico e doutrinário do que cantamos. Se estas coisas forem feitas, nós começaremos a ver uma dramática diferença qualitativa na música que vem sendo composta para a igreja.

Enquanto isso, não vamos jogar fora nossos hinos clássicos. Melhor ainda, vamos reavivar alguns dos maiores hinos que caíram em desuso e adicioná-los novamente ao nosso repertório.

Notas
1 John MacArthur, Joni Eareckson Tada, Robert e Bobbi Wolgemuth, O Worship the King (Wheaton, IL: Crossway, 2000).

2 Vários hinos novos foram escritos e publicados desde 1940, claro, mas poucos deles se tornaram de uso comum das igrejas.

3 Robert K. Brown e Mark R. Norton, The One Year Book of Hymns (Wheaton, IL: Tyndale House), 1995.

4 J. C. Pollock, Moody: A Biographical Portrait of the Pacesetter in Modern Mass Evangelism (New York: MacMillan, 1963), 132-33.

5 Escrito por Julia H. Johnston (música de Daniel B. Towner).

6 Penso sim que o estilo deve ser apropriado para o conteúdo, e por isso eu seria contra algumas músicas cristãs contemporâneas por motivos estilísticos. Mas minha preocupação primordial está relacionada com o conteúdo e não com o estilo.

7 Letra por C. Austin Miles (1868-1946).

8 Isaac Watts, John Rippon, Augustus Toplady e Charles Wesley são alguns poucos dos compositores de hinos bem conhecidos, os quais foram, antes de tudo, pastores e teólogos.

9 O popular hino “Santo, Santo, Santo” (Holy, Holy, Holy), por exemplo, é uma recitação dos atributos divinos com uma ênfase particular na doutrina da Trindade. “Jesus, Alegria dos Corações que Amam” (Jesus Thou Joy of Loving Hearts), um hino antigo mas conhecido, é um hino de louvor a Cristo recheado de ensinamentos sobre a suficiência de Cristo.

10 No mais conhecido hino de Lutero, “Castelo Forte é Nosso Deus” (A Mighty Fortress Is Our God), cada estribilho constrói sobre o anterior, e as estrofes são, portanto, tão intrinsicamente ligadas que pular um verso destrói a continuidade e a mensagem do hino em si.

11 “Quão Grande és Tu” (How Great Thou Art) é um ótimo exemplo

12 Esta preocupação foi precisamente o que fez com que Joni Tada, os Wolgemuths, e eu escrevêssemos “Adorem o Rei” (O Worship The King) (vide n. 1).

13 Charles Hodge, Ephesians (Edinburgh: Banner of Truth, 1991, reimpressão), 302-3.

14 Aqueles que argumentam pelo uso exclusivo dos salmos (a opinião que nenhuma forma musical deve ser empregada na igreja além das versões métricas dos Salmos do Antigo Testamento) freqüentemente afirmam que a expressão “salmos, hinos e cânticos espirituais” é uma referência às várias categorias de salmos davídicos na Septuaginta. Mas se a intenção do apóstolo Paulo fosse delimitar a música na igreja aos Salmos do Antigo Testamento, existiriam muitas outras maneiras menos ambíguas que ele poderia ter usado para esclarecer seu ponto de vista. Ao contrário, o que ele pede aqui é uma variedade de formas musicais, todas usadas para honrar o Senhor admoestando e ensinando uns aos outros com as verdades da fé cristã. Se nós não devêssemos permitir letras na música eclesiástica senão Salmos do Antigo Testamento, então algumas das mais gloriosas verdades no cerne da nossa fé, como a encarnação de Cristo, morte na cruz e ressurreição, jamais poderiam ser expostos completamente na nossa música.

15 Tomado das notas não publicadas de um amigo que estava pesquisando o crescimento de igrejas e estilos de louvor em algumas mega-igrejas representativas.

16 Leonard R. Payton, “Congregational Singing and the Ministry of the Word,” The Highway, July 1998 (http://www.gospelcom.net/thehighway/articleJuly98.html).

17 Ibid.

18 Ibid.

19 Letra de Walter Chalmers Smith (1824-1908). Smith foi um pastor e moderador da Igreja Livre da Escócia.

Título original: With Hearts and Minds and Voices, publicado no volume 23, número 2 da revista Christian Research Journal (O artigo está completo em http://www.equip.org/free/DM806.pdf).

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